Quase nostalgia 1
Da autobiografia não-autorizada de Che Guavira
De vez em
quando se acha um texto relembrando a diferença de quando se era criança com a
criança de hoje. De que não existia celular e brincávamos longe de casa, depois
da aula, não existia celular e nossos pais nem sabiam onde estávamos. Bebíamos
água da torneira, íamos aos mangueirais chupar manga, procurávamos uma quadra
vaga pra jogar futebol improvisado. Não tinha essa babaquice de tal programa
recomendado pra tal idade.
O período de
aula era só manhã, tarde ou noite, de modo que tínhamos tempo livre pra ir
brincar e ter nossa vida em
casa. As férias eram 3 meses no fim de ano (dezembro, janeiro
e fevereiro) e julho. Os meses inteiros. Não tinha essa babaquice de hoje de se
achar que se pode compensar a falta de qualidade aumentando a quantidade.
Já se dizia
que o ensino público era mais fraco que o particular. Mas a vida toda em escola
pública e me capacitei muito bem porque peguei apostilas e fui estudar, não
dependendo só da escola, que me dando uma base já dava pro arranque.
Os colegas de
classe nos juntávamos a ir jogar na quadra de futebol de salão da escola se
estava livre. Se não íamos procurar outra ou um campinho disponível. Nunca
tínhamos o time completo. Era tudo improvisado, brincadeira mesmo. E como nos
divertíamos.
Uma vez
apareceu um professor de educação física que detestava futebol e não nos
deixava jogar, de jeito nenhum. Só basquete, o que fosse. Futebol não. Dizia
que futebol era esporte de ignorante. E contou do jogador que foi jogar em
Nata, Rio Grande do Norte, e disse que era legal jogar onde nasceu Jesus. Mas
basquete era muito chato e fugíamos pra jogar noutra quadra livre.
A aula de
educação física era muito tosca. Aquelas ginásticas estrambóticas, forçadas.
Uma chatice. Acho que muito dos problemas de coluna se deve àquelas ginásticas
bestas que éramos forçados a fazer. Eu odiava a aula de educação física e odeio
até hoje. Sempre gostei de jogar brincando, não com obrigação de vencer.
Como fui
criado muito reprimido sempre tive andar duro e muito mal-resolvido com o
corpo. No pingue-pongue sou bom porque é um jogo de mãos. Futebol é jogo de
corpo, como dançar. Nisso sou péssimo.
Por isso
quando fui fazer cunguefu tinha de imitar os movimentos do pessoal ao lado e
fazia tudo trocado. Até criança fazia certinho e eu trapalhão. Não tenho mesmo
coordenação corporal. Assim percebi que tô mais pra Chapolim que pra Chaolim, e
desisti.
Assim como
desistira do judô com 14 anos, que fiz só durante um mês. Primeiro porque
detestava ficar abraçado àqueles quimoneiros suados, segundo que tinha pavor de
ser jogado ao tatame como um saco de areia. Mas desisti mesmo porque viviam
cancelando aula por causa de competição. Hoje está ainda pior essa praga de
mentalidade competitiva. Só se fala em medalha, medalha, medalha. Nunca vi uma
modalidade que fosse pra que a pessoa se aperfeiçoasse, se relacionasse. Não.
Só essa perversão de ganhar medalha.
Eu era o mais
perneta do time. Sorte que éramos poucos, senão ficaria sempre no banco. Uma vez
dei um drible de craque em Davi, que era o mais baixinho e mais corredor, que
ganhava todas as corridas na educação física. Nunca fizera antes nem depois.
Pobre Davi. Teve de ficar ouvindo Á! Não! Levar um drible do Mário!
Uma vez fomos
jogar no campo do Exército. Nunca tinha entrado num campo de futebol. Só
brincávamos em quadra de salão. Na televisão o campo parece pequeno mas
entrando nele se vê o quanto é gigante. O gol era enorme. Não entendia como um
goleiro podia dar conta. Eu olhava o outro lado do campo e era longe, muito
longe. Só um ataque e eu já estava de língua de fora. Nunca mais quis saber de
futebol de campo.
Só tinha um
canal de televisão até 1980.
A TV Morena era rede Tupi. Quando a Globo decidiu montar
uma filial em Campo
Grande a TV Morena correu fazer contrato com a Globo. Grande
jogada. Assim se manteve durante muitos anos sem concorrência, em vez de deixar
surgir um concorrente mais forte. Depois a Tupi se extinguiu.
Tendo só um
canal tinha a vantagem de quando passava um programa se podia comentar com todo
mundo. E quando se perdia um sempre tinha alguém pra te contar. Hoje é
altamente improvável que se perca um programa e se ache alguém que o vira.
Uma sensação
foi o Didi, de Os trapalhões, fazendo
paródia do seriado Ciborgue, o homem de 6
milhões de dólares. Didi era Zé
Borges, o homem de 6 cruzeiros e 50 centavos. Era um sucesso quando faziam
paródia de novela, seriado, filme. Sempre esperei que fizessem de Geni é um gênio, mas infelizmente nunca
fizeram.
Negro pintar
cabelo? Era coisa doutro mundo. Por isso Muçum costumava se travestir com
peruca loura, o que soava muito bizarro e engraçado. Mas Os trapalhões perderam quase toda a graça ao se mudarem à Globo. De
tão padronizados ficaram bem insossos, bobocas mesmo. Viraram atração infantil,
no sentido mais pejorativo. Um colega disse que achávamos graça porque éramos
crianças. Então, vendo uns arquivos da TV Record, constatei que não. Que antes
eram muito melhores. Cheguei a ver o grupo na Tupi quando ainda se chamava Os insociáveis e achava Renato Aragão
(Didi) muito parecido com Ronald Golias (Bronco). Na época gostava mais do
Didi, só que foi perdendo a graça enquanto Golias nunca decaiu, nem depois de
velho.
A programação
não era via satélite, assim víamos as novelas com semanas de atraso com relação
ao eixo Rio–Paulo. Vinha tudo em videoteipe, via terrestre. VHS era coisa do
futuro. Quando se equiparou tudo perdemos vários capítulos das novelas.
Os desenhos
eram bons. Tinha programa bom o dia todo. Seriados dos melhores. Perdidos no
espaço, Túnel do tempo, Viagem ao fundo do mar, Geni é um gênio, A feiticeira,
As noivas, Daniel Boone... Me lembro que lá nos 18 anos fui dar uma olhada numa
daquelas sessões desenho matinais e fiquei chocado. Quando criança via os
desenhos na seqüência. Depois entrou na moda (imitação de Xuxa? Quem imita
quem) daquelas horrendas animadoras-apresentadoras infantis intermediando cada
desenho, enchendo o saco e também enchendo lingüiça.
As novelas
eram ótimas, tiradas dalgum romance clássico. Não como hoje, sem história
definida, quase interativa, onde quando se quer fazer propaganda dum
refrigerante se encaixa uma família almoçando com o produto encima da mesa. Não
tinha tanta babaquice de politicamente correto.
A Sessão da tarde só exibia filmes antigos,
raros os coloridos. A maioria da década de 1940, 50 e 60. Não esses filmes
idiotas de hoje. Na época nos referíamos a esses maravilhosos filmes como filme tipo sessão-da-tarde.
Não tinha
Procon, direito do consumidor. Nada. Quando se comprava o telefone era como se
comprasse uma casa. Caríssimo. Ficamos anos esperando o telefone ser instalado.
Orelhão era de ficha, aquela moeda fendida. Às vezes custava a ficha cair pra
ligação completar, dali a expressão Cair
a ficha.
Pedofilia?
Nunca ouvimos falar. Nem imaginávamos que existisse. Mas claro, nem o sexo se
sabia que existia. Se não tivesse lido uma Pais
& filhos, com 12 anos, onde um médico explicava a coisa... Me lembro
que minha mãe fez um escândalo quando minha irmã contou que falaram sobre isso
na aula.
Proteção ao
menor não existia. Se podia espancar o filho e ninguém poderia se meter.
Os tênis que
conhecíamos eram dois: Conga e Kichute. Conga era azul e Kichute preto.
Sorvete era no
máximo Kibom. Só tinha chocolate, morango e creme. Kibom foi uma novidade
tardia. Só muito mais tarde teve Gelato. Nos outros não tinha cremoso no
palito. Era muito sofisticado. Picolé era um refresco congelado no palito.
Torta só
conhecíamos uma. Era no máximo um bolo cortado em três andares e recheado com
goiabada, chocolate ou creme. E todo coberto com aquele glacê branco, duro,
açucarado. Uma vez vi num casamento numa fazenda, isso na década de 1980!, um
desses bolos. Já era mais moderno, o glacê estava mole. Ou era porque não
secara ainda? As moscas ficavam presas no glacê, parecendo uva-passa.
Cantor
rebolando, entrevistado macho sentar e cruzar as pernas? Jamais!
Não existiam
salões unissex. Isso foi forçado pelas crises. Homem só ia cortar cabelo na
barbearia e salão de beleza era coisa de mulher. Barbeiro era uma coisa,
cabeleireira outra. Homem não entrava em salão de beleza.
Computador? Em
1992 eu disse, a uma colega, que queria comprar um e ela achou que eu estava
sonhando! 1992! Imagine antes.
Fiz concurso
público quando ainda tinha prova de datilografia. Quando se era chamado, antes
de assumir o cargo se tinha de fazer uma prova de datilografia. E eram aquelas
máquinas mecânicas pesadonas, Remington Rand. Eu usava muito uma pequena,
portátil, Olivetti lettera 32 era a marca. Quando prestei concurso fiquei meses
sem tocar nela porque acostumava e estranhava as grandes. Anteriormente fiz uma
prova prum emprego particular e me saí mal porque estava acostumado com a
portátil. As teclas eram maiores e mais espaçadas e eu metia os dedos entre
elas. Então levei emprestada uma grande e fiquei acostumando nela. Deu certo.