domingo, 5 de maio de 2013

A língua esculhambada
Quem a vê tão esmolambada
pela escol lambada
sem escola lembrada
Questão pronominal
e questões mais
que estão pró-animal
se não questionais
Pobre língua portuguesa
outrora tão garbosa
Vilipendiam sua beleza
e deturpam em verso e prosa
Última flor do Lácio
saborosa, culta e bela
reduzida a mortadela
e língua de palhaço
Meu amigo Glauder dizia que eu deveria escrever de forma popular. Rejeitei, horrorizado, essa idéia. Se escrever é meu mundo, o único onde posso usar meu estilo, já que falando não dá, seria uma rendição total aderir à massa. Afinal, se até os livros cultos escrevem em português popular, a linguagem culta desaparecerá, como está desaparecendo.
Uma vez fiquei indignado quando vi o livro de escola, de minha sobrinha, ensinando pronome errado. Bem assim: Seu à segunda pessoa, em vez de teu. Caramba! Se não só na imprensa, mas também no livro escolar se usa pronome errado, então está tudo perdido!
Já vi texto usando parêntesis pra retificar a quem se refere. Tudo por não saber usar pronome. A ignorância viola a lógica e a estética.
Noutras vezes, lendo antologia de conto,  esbarrei nesse problema. Esse uso estúpido e irresponsável do pronome: Usar seu, lhe e outros à segunda pessoa, de modo que ficava confuso se o interlocutor se referia à segunda ou terceira pessoas. Um absurdo! Tinha de ler e reler, voltar vários parágrafos, pra me certificar de a quem se referia. Um verdadeiro quebra-cabeça! Tudo isso atrapalha a leitura e o prazer de saborear o conto. Se em livro culto, uma antologia de conto, se escreve assim, então onde será usada a linguagem culta?
Por que a imprensa escreve e fala de modo tão irresponsável? A gramática está disponível pra ser consultada. Não é uma matéria oculta, misteriosa, só acessível a iniciado. Então por que não consultam? Por que não aprendem? Por que persistem em condicionar o povo a falar errado?
O pronome funciona de modo referencial-posicional porque a estrutura da comunicação se dá com alguém que se comunica com outro ou outros. A mensagem pode se referir a qualquer pessoa, mesmo à primeira ou à segunda pessoa. Às vezes a uma terceira e ou quarta.
1ª pessoa ● Quem emite a mensagem: Fala ou escreve.
2ª pessoa ● Quem recebe a mensagem: Ouve ou lê.
3ª pessoa ● Alguém citado na mensagem.
4ª pessoa ● Mais alguém citado na mensagem.
Quando a mensagem se refere à primeira pessoa os pronomes são M Meu, Me, Mim, este, isto, aqui, coMigo... Vejas a simetria, a elegância de Tu comigo e eu contigo em vez do esdrúxulo e horroroso Você comigo e eu com você (Já que usam com você em vez de comigo, por que não usam com eu em vez de comigo? Hahahahá!).
Quando a mensagem se refere à segunda pessoa os pronomes são T Teu, te, Tu, esse, isso, aí, conTigo...
Quando a mensagem se refere à terceira pessoa os pronomes são S Seu, Se, Si, aquele, aquilo, ali, conSigo...
Quando a mensagem se refere à quarta pessoa os pronomes são L deLe, Lhe (o), eLe, aqueLoutro, aquiLoutro,  Lá, com eLe...
Quando alguém lê um anúncio: Faça seu cadastro. Analisemos a frase:
Obviamente o cartaz envia uma mensagem a quem está lendo. É como alguém dizendo isso a outro. A primeira pessoa é o cartaz, o anúncio de jornal, o que seja, ou quem o escreveu, o que dá no mesmo, o emissor da mensagem. A segunda é quem está lendo, o receptor. Não há terceira pessoa nem quarta nessa mensagem, pois não se faz referência a algo ou alguém.
O primeiro erro é a conjugação. Quem escreveu não sabe conjugar verbo. Conjugando o verbo fazer no imperativo afirmativo (urgente necessidade de reforma, pois é uma zorra a teoria da coisa. Pra quê imperativo negativo?, se apenas um não na frente... Faze não existe. Está entre umas e outras bobagens): Faça eu, faças tu...
Pra quem estudou conjugação, Faças é o referente à segunda pessoa. Portanto o anúncio se refere a uma terceira pessoa ignota. Quem ler o anúncio não tem obrigação de obedecer porque a mensagem é a uma terceira pessoa, não especificada. O leitor da mensagem poderá pensar assim:
Não sei quem deve fazer o cadastro. Só sei que não se refere a mim.
A frase correta: Faças teu cadastro, se dirigindo a um leitor, e Fazei vosso cadastro, se dirigindo à coletividade: Faça eu, faças tu, faça ele, façamos nós, fazei vós, façam eles. Se não, pra quê estudar conjugação na escola?
Na literatura em geral, em filmes, seriados, etc, vemos generalizada essa preguiça mental:
O galã, declarando amor a sua amada:  Eu a amo.
De antemão simplifiquemos a frase: amo só pode ser eu, portanto a frase fica: A amo.
A preposição a se refere a uma terceira pessoa. Portanto o galã se refere a uma rival da amada, que é com quem está conversando.
Sei que percebeste meus olhares a Ana. Perdão, mas devo confessar que a amo. Te amo também.
Vale ressaltar que rigorosamente correto seria Amo a ti em vez de te amo.
Amo a mim, amo a ti, amo a si, amo a ela - Me amo, te amo, a amo, amo ela
Outro erro crasso é usar lhe à segunda pessoa, quando pertence à terceira.
Lhe disse a verdade. O autor da mensagem está dizendo que disse (a uma terceira pessoa, que deve estar explícita no que antecede à frase, pois este exemplo é apenas um recorte) a verdade.
Lhe se usa quando se exerce ação. O dei: Estou dizendo que dei a segunda pessoa a alguém. Lhe dei: Que dei algo à segunda pessoa.
Me dei, te dei, lhe dei, dei a ele - 1ª, 2ª, 3ª e 4ª pessoas.
Em Portugal é comum trocar ti por si: O galã diz à mocinha: Gosto muito de si. Ora! Si se refere a uma terceira. Não percebe o fora que está dando? Teria de dizer Gosto muito de ti (e não o esdrúxulo Gosto muito de você).
Muitas vezes vemos o galã dizer à mocinha: Vou levá-la até sua casa.
Reparemos a sucessão de erro da frase:
Vou em vez de irei, pois vou e presente e não futuro. Sua em vez de tua, a menos que levará uma terceira pessoa. Levá-la. Simplifiquemos à forma menos esdrúxula, a levar.
Irei a levar até sua casa à A levarei até sua casa. Está dizendo que levará a terceira pessoa até a casa da terceira pessoa. Vejamos um exemplo concreto:
Mauro conversando com Ana e falando sobre Maria:
É verdade, Ana. Estou esperando Maria sair da escola, então
Vejamos os arranjos de a levar, te levar. Sua casa, tua casa:
a levarei até sua casa. Está dizendo que levará Maria até a casa de Maria.
a levarei até tua casa. Está dizendo que levará Maria até a casa de Ana.
te levarei até sua casa. Está dizendo que levará Ana até a casa de Maria.
te levarei até tua casa. Está dizendo que levará Ana até a casa de Ana.
Outro erro comum é a errada referência: Esqueci o presente. Te darei hoje. Ou: O pedido? Te enviarei hoje. Na primeira frase está dizendo que esqueceu o presente e que dará (essa pessoa com quem está falando) a não sei quem. Te darei significa que estou te dando a alguém. Mas como não existe escravidão dar alguém fica meio sem sentido. Na segunda frase está dizendo que enviará essa pessoa a algum lugar, quando quis dizer que enviará algo até essa pessoa. As frases corretas seriam, respectivamente Esqueci o presente. O darei hoje a ti e O pedido? O enviarei hoje a ti.
Na verdade o sistema triplo Eu Tu Ele - Nós Vós Eles foi mal-elaborado. Teria de ser um sistema quádruplo Eu Tu Si Ele - Nós Vós (?) Eles à Meu Teu Seu Dele - Nosso Vosso (?) Deles.
Claro que o idioma não é um código matemático. Tem imperfeição. O que devemos fazer é o melhorar ao máximo, o analisando, em vez de nos atermos a regras rígidas e postura embasbacada diante um guru, cultuando o que parece chique, ou deixar correr pura e simplesmente a esculhambação.
A rigor erro é o que induz a ambigüidade, mal-entendido, e isso tem de ser evitado.
Outra falha é a que o lingüista Otto von Störig apontou. Imaginemos a seguinte situação: Um líder sindical diz ao patrão: Nós estamos aguardando... Há idioma onde há duas forma de nós. No exemplo uma forma especificaria o líder sindical e seus partidários apenas, e a outra forma engloba também o patrão. No português e castelhano essa referência é deficitária, ambígua.
Exemplos de que o idioma não é um código matemático, preciso. É um limbo entre as ciências exatas e humanas. Pra ter charme puxamos a sardinha um pouco às humanas, mas exagerando vira a esculhambação que estamos vivendo. Pra evitar ambigüidade, mal-entendido, puxamos a sardinha às exatas, mas o exagero leva a uma linguagem protocolar, simétrica, robótica. Portanto sejamos inteligentes, moderados, sensatos.
É digno de nota salientar que os vícios de linguagem do português são os mesmos do castelhano (creio que idem no italiano). O que faz pensar num mecanismo natural de simplificação e preguiça mental de relaxar a referência, uma conspiração pra esculhambação lingüística ou ambos.
Fechando o artigo com chave de ouro, faço micro-resumo do conto do genial Monteiro Lobato, O colocador de pronome, satirizando essa esculhambação pronominal (Se Lobato sabia, por que os jornalistas e professores não sabem?!):
O feroz coronel, que mandava na região, tinha duas filhas, uma bonita e uma feia. O poeta da aldeia tomou coragem e mandou um bilhete à bonita: Amo-lhe. [É de lascar!]
 O coronel interceptou o bilhete, mandou os jagunços buscarem o ousado galã e, vislumbrando uma forma de desencalhar a filha feia, disse [recito de memória]: Em minha casa só há três mulheres: Minha filha que recebeu o bilhete, minha esposa e a outra filha. Como usaste o pronome lhe, que se refere à terceira pessoa, o amor não se refere a quem o recebeu. Só restam minha esposa e minha outra filha. Como aqui não se admite desrespeito, certamente o bilhete não se refere a minha esposa. Portanto só pode se referir à outra filha. Declaraste que a amas, então providenciaremos o casamento imediatamente!
Bem-feito! Onde se viu poeta que não sabe usar pronome?

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