domingo, 29 de setembro de 2013

O vampiro de Jerusalém
1
Eram vampiros os demônios?
Mal acabei de dar ração aos bichos quando começou a chuva torrencial. Como meu hábito, comecei a ler à luz da janela. A chuva persistia e eu já caía no sono quando ouvi alguém batendo na porta, insistentemente. Quem poderia ter chegado à estância naquele momento? Era meu amigo Léuis. Nem guarda-chuva portava. Ensopado, cansado e muito assustado. Parecia estar fugindo. Presumi que chegara em louca carreira.
— Rápido. Ninguém deve me ver.
O fiz entrar imediatamente e providenciei tudo pra normalizar a situação. Após um banho e um lanche rápido começou a contar.
— Te lembras de nossos longos serões sobre os ufos, as sociedades secretas que manipulam o destino do mundo, criaturas misteriosas e tantas outras coisas que discutíamos? Pois bem: Comecei a escrever, a desenvolver minhas idéias. Como ficção, certamente. Nada é mais perigoso que saber demais. Nada é pior que ter razão! O pior castigo ao escritor é ter sucesso demais. Como Irène Hillel-Erlanger, ao publicar Viagens no caleidoscópio, onde, na década de 1920, inocentemente, fez nele importantes revelações e foi, por isso, eliminada juntamente com sua obra.
— Aquela tua teoria sobre os...
— Sim! Aconteceu que, mesmo escrevendo ficção, acertei na mosca! Pela reação observada concluo que minha teoria é a mais pura verdade. Por isso querem me eliminar. Agora tenho de me esconder.
— Ora! Francamente! Isso já é paranóia!
— Então não crês? Pois, então, te lanço um desafio: Se pesquisares como eu e não te convenceres me matarei em tua frente. Vamos!
— Tudo bem. Aceito o desafio. Mas vamos em parte.
— Em parte! É assim, vendo tudo fragmentado e sob estereótipo é que a verdade nos é escamoteada.
— Mas falavas em vampiro...
— Não vês? Não percebes que todo esse estereótipo é intencional? Só abordam o tema sob a forma duma esculhambação grotesca, que é pra que consideremos ridículo o tema. Estão nos condicionando. Martelam tanto o estereótipo em nossa cabeça que já temos ojeriza. Isso é pra nos manter na ignorância e nos escamotear a verdade. Então se falarmos neles rirão de nós e virarão as costas. Não dizem que o maior trunfo do Diabo é fazer crer que não existe?
— É verdade. Já me passou na cabeça a questão de vampiro estar sempre na moda mas sempre em ótica tão pueril que chega a ser irritante. Agora já tem até vampiros vindos doutros planetas.
— Esqueças todos os estereótipos, todos os vampiros de cinema. Toda essa baboseira infernal só visa nos confundir. São tão estereotipados quanto a bruxa madame Min ou o fantasma Gasparzinho. Voltemos ao início. Vejamos como é o vampiro real e nos desviarmos do estereótipo no qual todos patinam. Todos, menos Robert Ambelain, por exemplo.
Se levantou e começou a dar lentas voltas em torno de minha poltrona.
— O vampirismo é um fenômeno de catalepsia. Tanto li e reli essa obra capital, que tenho de memória a síntese da capa traseira:
Sensacionais e recentes operações cirúrgicas levaram as mais altas autoridades médicas a admitir que a definição oficial de morte legal, apoiada, até então, na confirmação da parada absoluta do coração e da respiração, teria de ser revista, tendo em consideração as conclusões resultantes das referidas operações. O que dizer da imputrescibilidade absoluta do corpo, do sangue e dos órgãos essenciais, derivada da secreção de óleos necessários a uma espécie de auto-embalsamagem? O que dizer da manutenção duma temperatura próxima à dos vivos, da flexibilidade dos membros, muitos anos após o sepultamento (alguns casos remontando a cerca de 1800 anos)?
Citou também Ritos estranhos no mundo, de Jacques Marcireau, cujas sentenças de abertura e encerramento são essenciais. O livro começa assim:
Os ritos funerários não provêm do respeito aos mortos e da crença noutra vida (imortalidade), mas do desejo de impedir o regresso do morto (fantasma, alma do outro mundo) através dum tratamento especial do cadáver.
E termina assim:
Os seres psíquicos, que aparecem em todas as tradições religiosas e em todos os folclores, temíveis ou benéficos, anjos e demônios, deuses ou diabos, espíritos ou larvas, são os vampiros!
Léuis foi tomando tereré comigo. Isso o deixou ainda mais psicotônico, de modo a mais parecer um orador inspirado.
Eu ainda não captara o sentido geral do que tentava me comunicar mas deixei a cena rolar pra, aos poucos, ir ligando uma idéia a outra. Como conhecia Léuis muito bem, sabia que algo muito interessante, fantasioso ou não, se descortinaria a meus ouvidos.
— Estava criando um conto com idéias extravagantes, exercendo a criatividade. Sabes como é: Todo escritor de talento transmite idéia, ainda que fantasiosa, conectada, quero dizer, embasada nalguma teoria ou fato provado, levando o leitor a conclusões interessantes ou instigando a curiosidade com analogias engenhosas. Assim, fantasiando tão racionalmente em forma de ficção, fui, sem perceber, criando uma teoria verdadeira. Acabei descobrindo uma espécie de campo unificado da teoria conspiratória. Desvendei, numa só tacada, o elo entre as sociedades secretas, os ufos, a criptozoologia e outros tantos mistérios.
Eu sabia, muito bem, que não adiantaria ficar ansioso, tentar extrair uma explicação breve, clara e objetiva de Léuis. Melhor o deixar saborear lentamente seu desempenho teatral. Chupando mais uns goles através da bomba, deu umas voltas ao redor da mesa, reabasteceu a guampa e me deu a vez de tomar. Sua pose doutoral, como preste a revelar algo decisivo, parecia um daqueles detetives fictícios, como Poarrô ou Cherloque Rolmes, explicando, no final do episódio, como chegara a tão brilhante dedução que o levou a elucidar o crime.
Recomendou muito eu ler O vampirismo, de Robert Ambelain, Vampiro: A enciclopédia dos mortos-vivos, de Melton, e O culto ao vampiro, de Jean-Paul Bourre, embora fale sobre seitas que se baseiam mais no estereótipo e na fantasia.
— A Terra é um planeta anômalo, mal-assombrado, sinistro. Por isso tanto segredo, mistério, conspiração. Um grande blefe nos escraviza há milênios. Se as pessoas soubessem o quanto nosso dominador é débil... Como diz a canção: Esses moços, pobres moços. Á, se soubessem o que sei!
— Aquele teu conto Religião é a solução, sobre o que fazer quando as galinhas se tornarem inteligentes e reivindicarem seus direitos, é parte da descoberta...
— Sim! Vamos passo a passo e entenderás tudo. Como tudo é tão simples, afinal de conta. Vejamos o vampiro verdadeiro, sem estereótipo. A figura do vampiro do folclore da Europa oriental. O sujeito em catalepsia, morte aparente, é enterrado. Em muitos casos acorda no túmulo e, desesperado, tenta sair, come os dedos e morre asfixiado. É uma das mais horripilantes maneiras de morrer. Mas há casos em que permanece, definitivamente, catalético. Então, num natural recurso de sobrevivência, sai, em desdobramento, exteriorização da consciência, viagem astral. Seja qual nome se dê. O caso é que é assim que essa larva, essa consciência vegetativa que, num instinto egoísta, busca sobreviver a qualquer preço, se alimenta. Não sai fisicamente do corpo como naqueles ingênuos filmes de conde Drácula. Não é algo análogo ao desdobramento dos vivos mas exatamente isso, porque não é um morto mas um catalético. Nem chupa sangue, pois vampirismo não é hematofagia. Seu ataque é instintivo, um predador de energia vital. Ataca durante o sono, não o outro indivíduo mas o duplo dele. É durante o sono que ficamos mais vulneráveis. Por isso certas insônias são recursos de defesa contra ataques psíquicos. O vampiro suga a energia vital, o magnetismo, da presa. O ataque é brutal, não aquela suave e romântica mordida no pescoço daqueles filmes encantadores mas tolos. Como no relato do ataque a Stanoska. Ela afirmou que fora o filho do arquiduque Milo, que a tentara estrangular. Gritava, apavorada. As famosas marcas de mordida seriam marcas de dedos, não de dentes caninos, pois caninos não servem a predador hematófago e sim a carnívoro. Hematófagos, como o morcego, têm os dentes da frente alongados e pontudos pra furar e sugar. Com caninos perfurando a pele o sangue escorreria nos cantos da boca. A confusão com a hematofagia se reforçou quando o populacho conseguia convencer as autoridades a exumar os suspeitos. Encontravam os suspeitos conservados, como dormindo, e os panos do caixão empapados de sangue. Acontece que esse sangue é do próprio vampiro, não da vítima. Algum metabolismo acelerado causava essa hemorragia. Tudo isso levou à conclusão errônea de que o vampiro bebe o sangue dos vivos. Esse ataque, instintivamente preferencial a consangüíneos seus, se esparsa longamente no tempo, média de 50 anos, devido ao estado catalético do vampiro, que, apesar de sangrar tanto, tem metabolismo imperceptível.

Passamos muitas horas discutindo o tema. A aposta me levou a viagens e descobertas sensacionais, que relatarei mais centrado nas idéias que nas peripécias cronologicamente observadas. Tive outros encontros com Léuis e anos depois, com a crise dos conspiradores, saiu da fuga constante.

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