O vampiro de Jerusalém
6
Esta é minha carne! Este é meu sangue!
Um sonho tão vívido. Me
pareceu o mais longo dos sonhos, durante minha difícil convalescença. Não
discutirei o mérito, a verossimilhança de minha onírica aventura. Apenas
relatarei fielmente, mantendo as impressões e idéias que me ocorreram naquele
estado alterado de consciência, com o cérebro intoxicado por miríade de dejeto
bacteriano, cada toxina mais potente que a outra, resultando em pensamentos
febris de lógica inconcebível. Pude relatar porque anotei tudo imediatamente ao
despertar, do contrário já teria esquecido. Hoje, relendo, me parece memória
doutra pessoa, tal a estranheza e fascínio que me causa.
Eis, sem censura e na
íntegra, o pesadelo:
Era madrugada, horas antes
da alvorada saímos, na camionete de Raul, de Campo Grande pra pescar no rio
Miranda. Aproveitávamos o feriado da paixão pra pescar. Eu pilheriava dizendo
que deveríamos reunir um grupo de sambistas e fazer um retiro carnal, pois os
anti-carnavalescos não fazem retiro espiritual durante a folia?
Eu ia ao volante. Fitando o
estirão de asfalto mil coisas me passavam na cabeça: Me vinha, em onda, a
preocupante lembrança do escárnio com que Raul se referiu, em sua palestra na
universidade federal, a toda forma de religião estabelecida. Ele ria de minha
preocupação mas conheço tantos casos na história, onde o inconsciente coletivo
de determinada crença agia de forma punitiva contra seu agressor, gerando uma
maldição. Eu era muito cientificista quando muito jovem mas cresci e aprendi,
pela vida e pela leitura, que ignorante
é quem comete a ignorância de ignorar a própria ignorância. Já ia longe o
tempo quando eu encontrasse uma encruzilhada comeria a galinha preta com a
farofa, degustando a pinga à luz da vela preta.
Lá pelas 9h avistamos
camiões vindo no sentido oposto fazendo sinal de luz. Após a curva seguinte uma
densa e inexplicada neblina nos colheu de surpresa e envolveu o veículo num
manto de vertigem. Permanecemos nela quase meia hora e, ao sair, estávamos
perdidos. Raul ficou pasmo em se perder em área tão conhecida. Misteriosamente
não mais estávamos sobre asfalto e sim sobre estrada de terra terrivelmente
esburacada. Não encontrávamos placas nem conseguíamos nos situar no mapa.
A vegetação não era a de
nossa região e estava ainda mais quente. Logo adiante vimos uma placa de
entrada dum povoado: São José das
Tormentas. Raul se exasperou.
— Não há tal povoado no
local, nem fazenda, nem chácara com esse nome. Já viajei até a pé em toda parte
e nunca vi ou ouvi falar em tal lugar. Nasci e sempre vivi aqui!
Em seguida nos deparamos com
Santa Cruz das Almas. Ali paramos pra pedir informação. Então fomos recebidos
com uma amabilidade exagerada. Muitas pessoas nos cercavam, curiosas e um velho
fazendeiro nos ofereceu sua casa. Assim ficamos hospedados na casa do coronel
Leodegar, pois só assim, disse ele, poderíamos ficar livres de ser importunados
pela curiosidade do povo, que muito raramente vê um forasteiro.
Pra nosso espanto já chegava
o crepúsculo, sendo que poucas horas se passaram de nossa saída de Campo Grande.
Deveria ser, no máximo, 12h. Meu relógio marcava 11:27h. Nesse momento chegou o
padre pra nos conhecer. Velhote muito amável, brincava e pilheriava a valer. Como
ele nos sentimos a vontade pra indagar, o que não fizemos com o sisudo coronel.
Logo ficamos sabendo que é
sempre uma alegria quando chegam forasteiros prà Sexta-feira Santa. Eles têm a
honra de estrelar a grande encenação da paixão. O povo acredita que a presença
de forasteiros estrelando a peça traz muito favor divino à comunidade. Fomos contemplados.
Um papel será o de Cristo e o outro o de Judas.
Na rua reinava o mais
completo silêncio. As pessoas não se permitiam rir ou demonstrar qualquer
alegria. Era a Semana Santa bem ao gosto de nossos avós. As pessoas tinham de
demonstrar tristeza e consternação pela morte de Jesus, tudo bem ao estilo de
minha avó materna, e mesmo de minha mãe, no Paraguai. O único alegre e folgazão
era mesmo o padre. Nem sei se estava brincando quando lhe mostramos nosso mapa
e pedimos pra nos mostrar onde estamos. Rindo dizia que nunca vira um mapa
antes.
Na manhã seguinte
participamos da via sacra. Interminável, mórbida e maçante via sacra. Demos uma
volta no povoado e no meio do caminho uma pausa pra eleger nosso papel. Raul
insistiu em ser Cristo. Porque muitas vezes na escola fizera esse papel, porque
até já fora o Cristo em Nova Jerusalém, etc., etc. A mim coube o papel de
Judas.
A missa se realizou na gruta,
a meia hora de caminhada do povoado, mas que entre reza, cântico e louvor se
converteu em duas e meia horas. Na base dum morro e no começo de vasta planície
se situa a gruta de larga entrada. Penetramos fundo com tochas preparadas pra
esse fim. Não posso descrever a intensa impressão que me causou aquela missa
tocante no fundo da gruta a luz de tocha. Encantador e mórbido é o mínimo que
posso dizer. Lá pelas tantas o padre levantou o cálice com a hóstia consagrada
e pronunciou estas palavras:
Esta é minha carne!
Este é meu sangue!
Quem crer em mim terá vida eterna
Então pegou um alfinete e
com ele fincou a hóstia. Raul deu um grito de dor. Seu braço esquerdo sangrou
com uma espetada. No rosto do padre percebi uma fisionomia irônica, quase um
sorriso sardônico. Corremos pra fazer curativo. Era espantoso que ele, justamente
ele, que fora eleito pra representar Cristo na encenação, estava carnalmente identificado
com o vinho e a hóstia. Não sei como não me ocorreu antes que a oferenda da comunhão
é uma cerimônia vudu.
Na verdade na comunhão não é
o corpo de Cristo que nos é oferecido, e sim um pouquinho de cada um de nós a
ele! Por isso a necessidade de tantos adeptos: Tirando pouco de cada um seu
predatismo não é percebido.
Fiquei pensando qual seria o
motivo duma religião tão irracional como o cristianismo se implantar e perdurar
dois milênios. Resistiu, mesmo, a nosso tempo de racionalismo exaltado. Mesmo a
Ciência, que tanto combate a superstição e qualquer crença irracional, jamais
se ergueu contra essa crença absurda num salvador sangrento. Realmente: Superstição é a religião é dos outros.
Eles, que debocham dos macumbeiros, dos espíritas e dos adeptos de vida
natural, jamais se dispuseram a nos abrir os olhos contra essa crença imposta
pela espada e pelo fogo. O mesmo posso dizer do islamismo e do judaísmo, por exemplo.
A única diferença é que o islamismo nunca foi intolerante e obscurantista até
bem recentemente.
O padre encerrou a missa com
um pequeno sermão.
— Irmãos! Somos imensamente
privilegiados. Temos o que todas as outras comunidades cristãs jamais sonharam
obter, conhecemos o que jamais sonharam conhecer. Somos os guardiões do túmulo
de Cristo. Ele, que andou no mundo e faleceu aqui. Vamos, pois, orar em volta
do túmulo de nosso salvador!
Era tradição todo ano a
procissão terminar ao redor da tumba de Cristo. Nem mesmo o papa teria acesso a
ela durante qualquer outra data do ano.
Nos embrenhamos ainda mais
gruta adentro, descendo por caminhos tortuosos e escarpados, de escuridão
terrificante e unidade perigosa, molhando os pés em arroios muito rasos e
estreitos. Lá embaixo, numa ampla galeria subterrânea rica em estalactite e estalagmite,
o sarcófago de Jesus sobre um maciço bloco de pedra. Abriram a tampa e, à luz
das tochas, naquele ermo de treva, o que vi me pareceu ainda mais medonho do
que se visse em plena luz do dia. O corpo de Jesus plenamente conservado durante
dois mil anos, catalético, como dormindo. O semblante cruel e bestial de cuja
boca semiaberta se projetavam duas pontudas presas de vampiro e donde escorria
sangue, sangue este que empapava o branco lençol que o envolvia. Embaixo do lençol
se podia ver, em parte, o manto púrpura. Esse cristo se parecia muito com
aquele do famoso sudário.
Recuei horrorizado mas me
recompus a tempo de fazer crer que era por pura emoção e não horror. Ali estava
o deus sangrento do cristianismo, vivo enquanto tantos outros deuses estavam
mortos. Fiquei imaginando em que outros abismos estariam Maomé, Moisés, Buda e
deuses da Índia.
Senti grande impulso de
procurar uma estaca (se estivesse sozinho assim o faria). Um pedaço de
estalactite ou estalagmite serviria, e dar cabo desse monstro, desse baluarte
duma religião de impostura.
Era esse o destino do tão
controverso corpo de Jesus. De suas viagens na Índia e no Tibete aprendeu a
arte do transe profundo e com isso pôde resistir ao martírio da cruz. Foi retirado
da cruz em morte aparente e levado à profundeza secreta por seus seguidores
mais fanáticos. É daí que esse catalético, esse ser em profundo sono, maquina o
destino do mundo. Esse estado de profunda coma perverte todos os sentidos cerebrais
na busca única à sobrevivência e é isso que torna o vampiro uma criatura
completamente bestial. É, portanto, esse estado vampírico que sustenta, há dois
milênios, essa religião sem pé nem cabeça e explica sua inominável crueldade.
Somente um terremoto ou outro acontecimento que ponha fim a esse monstro
dormente fará extinguir essa religião pervertida e perversa.
Há muitas lendas de túmulos
de Jesus pelo mundo. Em Jerusalém, no Himalaia, no Japão. Em cada local o povo
acredita que está ali o túmulo de Jesus. Muitas teses discorrem sobre o destino
final da personagem. Tenho, em meu arquivo, um recorte da Folhasp de sábado, 25
de dezembro de 1993:
The
Independent de
Londres
Cristo Morreu no Japão, crê
vilarejo
O
jornal diz que os moradores dum vilarejo ao norte no Japão acreditam que Jesus
Cristo está enterrado ali. Segundo eles, Cristo esteve no Japão aos 21 anos pra
estudar teologia. Retornou à Judéia pra resgatar o corpo de seu irmão Iskiri,
crucificado pelos romanos. Em seguida voltou ao vilarejo de Xingo, via Sibéria,
onde se casou, teve três filhos e morreu aos 106 anos. O vilarejo não tem
morador cristão e ninguém se interessa por cristianismo. De acordo com as autoridades
locais Xingo não tem interesse em explorar o potencial turístico do túmulo de
Cristo localizado num arrozal cercado de pinheiro.
Durante longos quartos de
hora rezamos e cantamos em torno daquela monstruosidade. Várias vezes cheguei a
arrepiar com o choro e lamento tocantes que chegavam quase a ser uivo de dor da
perda dum ente querido. Todos viviam intensamente aquela intensa dor. A paixão
era deles e não de Cristo. A todo momento sentia um medo de que a emotividade
instável daqueles fanáticos em estado de emoção transbordante pudesse fazer com
que a delirante missa degenerasse em violência descontrolada que se converteria
numa carnificina implacável. Os distúrbios em estádios de futebol, os
linchamentos e as guerras começam dessa forma.
Fecharam novamente o
sarcófago e empreendemos a viagem de volta. Chegamos no fim de tarde a ponto de
fazer a grande encenação da paixão. O povo todo na rua pra assistir e figurar.
Noite adentro o teatro se desenrolou: Maria fugindo ao Egito, Jesus expulsando
os mercadores do templo, a traição de Judas (felizmente não fui hostilizado
nesse momento), a prisão, a crucifixão, entre outras cenas, se desenrolaram.
A crucifixão! Que horror
inefável senti naquele momento, quando percebi que, na encenação, Cristo é
crucificado de verdade! Como posso expressar o horror que senti ao ouvir os
gritos, autênticos gritos de dor, de Raul, que foi coroado de espinho, carregou
a cruz e foi pregado nela. E eu ali, preso como Judas, nada podia fazer. Não os
pude trazer à realidade, de seu delírio louco, de sua desvairada empolgação. E
quando o soldado romano lhe espetou a lança, que dor senti. Assassinos! Os vi
matarem meu amigo, matarem de verdade! Quando o desceram da cruz vi que
relaxaram minha guarda e corri junto a seu corpo. Estava morto, realmente
morto. Se esse é o castigo de Jesus, imagine o de Judas! Fiquei ainda mais
apavorado. Estou no papel de Judas, meu castigo será ainda mais atroz! Me lembrei
da colgadura. Li, certa vez, que o castigo que os partidários de Jesus
aplicaram ao traidor da causa, Judas, foi a colgadura: Judas foi dependurado e
seu ventre aberto de cima a baixo vivo, de modo que as vísceras fossem caindo
pela força da gravidade. Um castigo ainda mais cruel que o suplício na cruz.
Corri feito louco a me esconder na mata. Já estava quase fora do povoado quando
me vi cercado.
— Será meu fim. Serei
malhado como Judas. Malhado de verdade. Talvez agora, talvez no sábado de
aleluia. Então, até lá, sofrerei sabe lá que tortura psicológica.
Fiquei branco, gelado,
trêmulo, pasmo, aterrado, quase em choque. O padre se aproximou de mim e disse num
tom tranqüilizador:
— Por que foges? Achas que te
malharemos? Por certo que não! Se Cristo foi crucificado pra nos salvar, então
Judas nos fez um bem. É graças a ele que fomos salvos. A ele devemos agradecer:
Seríamos muito ingratos se o malhássemos.
Encheram minha camionete de
presente e me deixaram ir em paz. Vaguei três dias sem rumo até me achar em
local conhecido.
Mesmo assim, só um
pensamento me obsedava:
Um dia procurar aquela tumba
e destruir seu ocupante.
Nenhum comentário:
Postar um comentário