O homem que escrevia sonho
Jacques Bergier
Extraído da revista Planeta 28.12.1974
Lovecraft,
cuja obra sofre processo de reavaliação, foi um segundo Allan Poe. Viveu na
penúria, às vezes não tinha dinheiro pra sair de casa. Não tolerava frio, tinha
alergia a mar, vivia doente. Fracassou no casamento e nas tentativas de
escrever estórias normais pràs revistas. Se considerava um exilado em sua
terra. Suas estórias reproduzem seus sonhos. Através do sonho conhecia Paris
tão bem quanto um parisiense. Seu grande mérito consiste em ter conquistado à
imaginação imensos domínios nos quais ela jamais se aventurara.
O grande mérito de Lovecraft consiste em ter conquistado à
imaginação humana imensos domínios nos quais ela jamais se aventurara. Seu pensamento
penetrou tão longe quanto o pensamento humano pode alcançar em nossos dias.
Criou um mito do qual diz que encerraria um significado pros cérebros compostos
pelo gás das nebulosas espirais. Um mito que exprime a grandeza e o temor
cósmico não só em escala humana mas pra toda a inteligência, mesmo se sua forma
exterior não se assemelha à nossa. Pois toda inteligência, mesmo mais poderosa
que a nossa, deve sentir o temor aos espaços infinitos, que paralisava Pascal.
A ciência confirmou plenamente a existência dessas enormes extensões de tempo e
espaço após a morte de Lovecraft. A radiatividade permitiu demonstrar que a
vida existe na Terra há mais ou menos 3 bilhões de anos.
As dimensões do
universo acabam de dobrar, como conseqüência de experiências mais precisas. HP
Robertson, na América do Norte, e Vorontzov-Veliaminov, na União Soviética,
chegaram à conclusão de que o universo é infinito no espaço e no tempo e não
finito e curvo como Einstein acreditava.
Deste universo
talvez infinito os radiotelescópios recentemente inventados captam sinais que
não parecem provir das estrelas que são talvez a manifestação de fenômenos
naturais desconhecidos e que talvez emanem de inteligências que dispõem de
meios de ação infinitamente superiores aos nossos. Nesse infinito de espaço e
de tempo não existiriam atividades superiores a nossa atividade de micróbio,
atividades que se colocam na escala do universo, tal como a ciência nos
demonstra?
A reação a essa
idéia dum universo vivo e rico não só de fatos naturais desconhecidos como de
atividades vitais situadas além do raio de nossa imaginação varia evidentemente
com a mentalidade de quem o encara. Lovecraft respondeu cum temor que conseguiu
comunicar ao leitor de maneira prodigiosa. Outras reações são evidentemente
possíveis. A atitude de Lovecraft se explica, ao menos em parte, por sua
psicologia pessoal.
Um
doente bloqueado pela doença e pela pobreza
Quanto a Lovecraft
(1890-1937), suas publicações até o momento não revelavam muita coisa a
respeito do autor. A chave de prata é a única autobiografia espiritual de
Lovecraft que chegou até nós. Nos faz seguir o caminho que conduz a fora de
nosso universo, nos contornos do desconhecido. Esse caminho percorre, até certo
ponto, a rota da ciência. Noutro lado, se separa nitidamente do ocultismo. A
respeito desse assunto Lovecraft exprime um julgamento severo: A estupidez
crassa, o julgamento falso e a rigidez de espírito não substituem o sonho.
Esse caminho, que
penetra fundo no desconhecido tanto quanto é possível ao espírito humano, só
pode ser seguido pela imaginação, amparada por conhecimentos científicos e
históricos profundos. Tal caminho está aberto a todo mundo, mesmo Lovecraft, o
doente encarcerado na doença e na pobreza (o deportado que fui também percebeu
que esse caminho de evasão existe e que leva a muito longe, muito além dos fios
de arame farpado dum campo de concentração).
Esse caminho
existirá sempre. Mesmo se um dia o homem desenvolver astronaves ou máquinas
ainda mais maravilhosas que viajem no tempo e nas dimensões, além dum ponto
extremo atingido fisicamente se estenderão os domínios acessíveis unicamente ao
espírito humano. Pra seguir esse caminho Lovecraft começara absorvendo uma
grande parte do saber humano. Nunca me acontecera me corresponder cum ser a tal
ponto onisciente. Conhecia um número incalculável de idiomas, entre eles,
quatro línguas africanas: Damora, suaíli, chulu e zani, bem como dialetos.
Escrevia com idêntica erudição a respeito de matemática, as cosmogonias
relativistas, a civilização asteca, Creta antiga e a química orgânica.
Absorvia o saber
numa espécie de osmose extraordinária. Quando lhe escrevi o cumprimentando por
ter descrito um bairro pouco conhecido de Paris, em A música de Erich Zann, lhe perguntei se já visitara a capital
francesa, ao que me respondeu: Como Poe, em sonho.
Em sua casa da rua
Barnes, 10, em Providência (Ilha-de-Rodes), viajara a todos os países descritos
ou imaginados pelos homens. De todos esses países, era o século 18
norte-americano seu preferido, admiravelmente descrito no início de seu romance
O caso Charles Dexter Ward. Se encontrava perfeitamente à vontade naquele
século e devia sonhar cuma máquina que o transportasse até lá, através do
tempo. Escreveu: O combate contra o tempo é o único assunto que importa a um
romance. Marcel Proust não o desmentiria.
Não era com grande
freqüência que Lovecraft saía de sua casa da rua Barnes. A pobreza o impedia. A
pobreza e também uma hostilidade que as coisas lhe manifestavam. Não tolerava
frio, mesmo que não fosse muito rigoroso, e todo contato com o mar ou com
objetos originários do mar o adoecia. Portanto se locomoveu muito pouco. Uma
viagem ao sul de Estados-Unidos, uma estada em Nova Iorque e algumas excursões
na região de Bóston foram suas únicas andanças conhecidas.
Se desforrou
viajando a muito longe na imaginação e no sonho. Os sonhos de Lovecraft eram
duma precisão extraordinária. Algumas de suas novelas são nada mais que a
transcrição deles. Freqüentemente enviou a mim narrativas detalhadas. Tais
narrativas eram extraordinárias pela força da imaginação e a coerência dos
detalhes. Conhecia profundamente a obra de Sigmund Freud mas pouco acreditava
nela. Com efeito, a psicanálise teria dificuldade em explicar construções tão
coerentes quanto o romance No abismo do
tempo. De resto, o caso de Lovecraft não é único. Lovecraft reafirmou a
importância dos sonhos numa novela intitulada Além do muro do sono. As viagens imaginárias, que no início eram
apenas uma evasão, se tornaram rapidamente a parte essencial de sua vida. Porém
mesmo nos sonhos conservava os traços essenciais de seu caráter: O rigor
científico da lógica. Raramente conheci um materialista mais convicto ou um
amador que melhor compreendesse a matemática. Em circunstâncias diversas se tornaria
um físico extremamente brilhante. Uma vez mais a pobreza e a doença barraram
seu gênio. Parece inconcebível que em um país como Estados-Unidos, onde se
ganha tão facilmente dinheiro, um homem da cultura de Lovecraft jamais
conseguira receber mais de 15 dólares por semana. Na época um lavador de prato
num restaurante ganhava 60 ou 70 dólares, realizando um trabalho menos penoso
que o de Lovecraft, o qual levava mais de 10 horas por dia colocando em bom
inglês as novelas e romances destinados às revistas norte-americanas. Mais duma
vez seus amigos tentaram o fazer ganhar um pouco mais, o encorajando a escrever
suas narrativas, cuja trama é, com freqüência, muito simples. As revistas
norte-americanas da época eram muito especializadas (a televisão e a preferência
pelas estórias-em-quadrinho então ainda não surgiram). Havia revistas dedicadas
a estórias de vaqueiro, amor, policiais, bombeiros, pólo norte e a estórias da
floresta, etc. Lovecraft foi obrigado a passar em todos esses gêneros. Os
editores devolviam suas narrativas. Se tratava de obras que pareciam escritas
por um marciano. Num inglês perfeito o autor revelava sua ignorância relativa
aos detalhes mais normais da vida quotidiana. Não sabia o que era um homem, uma
mulher, o dinheiro, o metrô, um cavalo e ignorava até as realidades mais
fundamentais da vida norte-americana: A situação (job), a posição (standing),
a necessidade do conforto e do progresso material. Às cartas estupefatas dos
editores dava a seguinte resposta: Peço desculpa, mas a pobreza, a tristeza e o
exílio fizeram com que tudo isso saísse de minha cabeça. Exílio: Eis a
palavra-chave. Lovecraft sempre se comportou como um estrangeiro, um ser vindo
de alhures. De tempo a tempo surgem seres desse gênero. Kafka, que, ao que
parece, não conheceu Lovecraft, talvez seja outro exemplo.
Vivendo entre nós
como um exilado, seria inútil lhe pedir que apreciasse nossos valores. Seu
casamento naturalmente foi um fracasso e as tentativas de o lançar foram todas
fadadas ao insucesso. Nenhuma história da literatura norte-americana, nenhum
dicionário de literatura, nenhum Who's
who[1] mencionou seu
nome.
O único realismo
digno da grandeza do universo
No entanto
acreditava na importância do realismo fantástico: Esse ramo da literatura foi
cultivado por grandes escritores, como Lord Dunsany, e por fracassados como eu.
Constitui o único realismo verdadeiro, a única tomada de posição do homem
frente ao universo. Sempre tive a impressão de que falaria mais se o pudor e o
temor ao ridículo não o impedissem. Era muito reservado em relação aos seres
humanos. A única forma de vida neste planeta que merecia sua confiança era o
gato. Em sua casa sempre havia muitos, e conseguia estabelecer com eles a
comunicação secreta que os amigos dos gatos tão bem conhecem. Se atemorizava
com as visões que evocava? Não acredito. Simplesmente escolheu o terror como
assunto de seu relato, como meio de nos fazer compreender a imensidão do
universo e as forças que nele se movem.
[1] Who's who:
Compilação de breves esboços biográficos de personalidades em determinado
campo. Nota do digitalizador
ola, jorge.
ResponderExcluirpesaroso ao receber essa noticia do passamento do joanco.
quero crer que onde ele estiver, ele estará te acompanhando.
amigos sao assim.
estou solidario com seus sentimentos.
um forte abraço pra voce.
e pra joanco, que sua jornada seja de muita paz e luz !
Valeu, Pancho
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Valeu, Pancho
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