Coleção
de cartão-postal de Joanco
Crônica
buenairense-montevideana, 2016
Capítulo 4
Rebeldes
sem causa nem mensagem ● A
síndrome do brinquedo novo e o filtro melita da nave da santidade ● Catarata
auditiva ● Sorridentes
montevideanos ● O
quilombo de Palmares na amazônia ● Coco, pimenta e tereré ● Gato
preto na vitrina ●
A feira da espremeção ●
Fumantes e psicose ●
Cadê comida? ● O
carvão ativado pode salvar tua vida ● Aberrações idiomáticas na
visão de Carlos Molina
Saindo da livraria que era teatro caminhei em direção ao
obelisco, pra percorrer a avenida Corrientes, que é um nome em referência à
província de Correntes. Quem já leu sobre a histórias do cone-sul já viu muito
sobre as disputadas regiões de Missões e Correntes. Tem até aquela sensacional
piada entre as canções num cedê, de José Antônio Fagundes, O causo de padre Rômulo, citando correntinos e castelhanos, que
seriam argentinos e uruguaios.
Passando na praça de maio um aglomerado. Mais um protesto. Militantes
com bandeiras e faixas cheias de dizer mas que não se conseguia ler. Em meu
conceito, quando alguém faz um protesto seria pra conscientizar a população.
Então dispor a mensagem de modo que mais pessoas leiam. Mas ali parece que
estavam só portando as mensagens. Não era pra alguém ler. Vá-entender! Eu, hem?
É tanto protesto, que já banalizou. Protesta porque tem de protestar. Vai ver
que nem sabem qual mensagem estão brandindo. Igual o pessoal de nossas
passeatas: Só pra sair em foto no facebuque.
E como tem táxi! Quando o sinal fecha numa esquina sempre
param dois, três, quatro táxis. Diria que o que Campo Grande tem de moto Buenos
Aires tem de táxi. Mas moto-táxi não.
No sábado parti a Montevidéu em barco. Buquebus é a empresa
que faz o percurso aquático ligando as duas capitais. O taxista queria saber se
era Aeroparque ou o outro, pois são dois aeroportos. Já ia me levando ao
Aeroparque, quando enfim entendeu que era barco marítimo-fluvial.
No chequim mais um contratempo: Deixei o papel da emigração
no hotel. Mas isso acontece direto. Foi só pegar uma pequena fila onde uma
senhora imprimia os dados do sistema.
Não sei pra quê tem de ficar pegando e entregando esse
papel, se fica tudo no sistema, sendo que a passagem nem precisa ser impressa.
Basta apresentar a identidade, pois a passagem está no sistema.
No saguão do chequim tem um paredão cuma bonita cascata. O
problema é que a cascata faz um barulhão que atrapalha os avisos do sistema
sonoro, que é precário. Com a cascata quase não se ouve o aviso.
À entrada do barco distribuem algo que parece uma calcinha
de filtro melita. Ou seria uma touca? Não. São sapatilhas. De balé? Não.
Pantufas, como de hospital. Ai! Santa frescura! É que o barco é novo, batizado
Francisco em homenagem ao papa. Diz que é o ferribote mais rápido do mundo.
Sorte que não tem missa antes de zarpar.
Mas parece que só tem esse, porque só tem duas viagens por
dia: 11h e 19h.
No telão diante da poltrona passa continuamente a propaganda
do barco. Quando aparecia o logotipo Francisco… Bom… do rio São Francisco é que
não é…
É a síndrome do brinquedo novo. É sempre assim. Até
repartição pública quando vai a prédio novo fica cheia de frescura.
Tem de calçar as sapatilhas melita pra não sujar o barco! Só
não sei se é lavado com água-benta.
Pra compensar tanta frescura deveriam nos aspergir com
água-benta.
Talvez o papa Chico, que decerto compareceu à inauguração do
barco, já de antemão deixou bento todo o estuário do Prata.
Nem se percebe que já se entrou no barco. Pensei que estava
numa sala-de-espera, quando o barco começou a navegar, tão bem encaixado fica.
No térreo é a classe econômica. Os andares são a executiva e a turística. Tem
um xopinzinho, uma lanchonete e uma casa-de-câmbio.
Fiquei pensando o motivo daquilo. Depois perguntei no hotel:
Brinquedo novo.
Na saída é um estripetise podológico. O pessoal tirando a
pantufa e uma faxineira recolhendo.
No porto de Montevidéu forma fila pra pegar táxi, que volta
e pega mais passageiro. Mas tem ônibus de cliente buquebus.
A amabilidade e simpatia dos montevideanos é impressionante.
Eu compararia com Natal, Rio Grande do Norte, onde o pessoal é extremamente
sociável e hospitaleiro. O taxista foi dando dica no trajeto todo rumo ao hotel
Europa. No final pegou umas notas e mostrou o valor de cada, recomendando muito
ter cuidado, olho-vido, etc.
É algo que parece a marca-registrada: São sorridentes. Uma
simpatia que passa muita naturalidade: O balcão do hotel, a camareira, os
garções nas lanchonetes. Não deixa de ser um choque cultural.
E como tem brasileiro em nossa antiga província Cisplatina.
Se for me dirigir a outro hóspede no hotel, melhor falar em português primeiro.
Nos muros e fachadas vi muitos cartazes anunciando curso de português.
— Com
tanto brasileiro… foi assim que anexamos o Acre…
Montevidéu parece Florianópolis: Pequena, litorânea e
tranqüila.
Na manhã de sábado fui ao mercado do porto.
Percorri várias quadras, pra ver a cidade, bater perna, até
chegar ao litoral. A rambla é um calçadão quilométrico muito parecido com a
beira-mar de Viña del Mar, Chile, o que no Rio de Janeiro se chama orla. Diz que não é poluído, mas
vá-saber!
Dia ensolarado, muita gente passeando, gente tomando sol e
jogando pau pros cachorros pegarem na água. Percorri uns quilômetros e peguei
um táxi pra ir direto ao mercado do porto.
Na verdade apenas uma quadra, um calçadão, com barracas e
lojas de artesanato. Algumas barracas vendem antigas placas de automóvel e
moto, algumas muito enferrujadas. Ali tem o Moebius,
um pequeno e bem-cuidado sebo, onde atende seu Gerardo, com os braços tomados
de tatuagem colorida, tudo de Poquemón! Mas não é só sebo. Tem também
antigüidade. Encontrei ali vários números da revista Leoplán, somando com as que encontrei na praça da Rivadávia.
Meio-dia, pedi indicar um restaurante. Ao lado, o La fonda.
Mesas na frente e no fundo. Entrei. Vinha Rominda, a
garçonete. Passou sorrindo.
Imagines se uma brasileira passaria sorrindo. Nunca!
Pensaria que eu pensaria que está me dando bola…
Sugeriu uma mesa na calçada. Ali um atendente declamou cada
opção do cardápio. Excelente a opção Pulpón
al horno con hierba (Polvo ao forno com erva), com purê de abóbora. De
quebra uma excelente cerveja ruiva.
Descendo a calçada e tomando a esquerda tem o museu do
Carnaval (Rambla 25 de Agosto 218, esquina Maciel, fone 2916-7177, www.museodelcarnaval.org), um pequeno
museu cuja entrada custa 60 centavos de peso pra cidadão do Mercossul.
Voltando à praça, uma loja de artesanato cuja dona tem um
gato preto que gosta de ficar na vitrina. Aceita real. Muitos lugares lá
aceitam real. Muitas pedras. Tenho uma queda por pedra mas é um problema de
peso levar pedra.
Já esteve em Florianópolis. Com tanto cliente brasileiro,
acabou aprendendo a falar português atendendo mesmo. Disse que no Brasil é
muito forte a superstição do gato preto, que muito cliente brasileiro chega e
se esquiva do gato preto da vitrina:
— Como pode
tanta ignorância? Pobre bichinho!
Explicou:
— Na
verdade não é bem gato preto, porque tem o peito e os bigodes brancos.
Já
outros perguntam o preço do gato preto, mas não está a venda.
Não entendo por quê gato preto é bruxo mas cachorro preto
não. Pele preta é raça inferior mas cabelo preto não. Vá-entender!
Conversamos um tempão. De repente foi a dentro buscar sua
gata creme, que estava dormindo, pra mostrar a mim, deixando a bolsa bem ali.
Um batuque meio samba meio ritmo caribenho. Um quinteto
agitando bandeira e batucando. A mulata, de bermuda brim meio sambando meio
lambadeando, uma canção muito bonita, meio letra de tango, rimada. Acontece
também na feira Tristán Narvaja, onde esporadicamente um grupo se apresenta
assim.
Quando saí o dono o dono da Moebius terminava de falar cum casal. Me despedi, comentei se o
nome da loja vem da famosa faixa-de-mébio, a superfície sem interior nem
exterior. Isso mesmo. A moça do casal, quando passei ao lado, deu chau. Mas
como? Se fosse brasileira só daria chau a quem conhecera antes ou ali. Na
maioria das vezes nem isso. É um grande choque cultural, sem dúvida.
Voltei ao hotel, pra deixar as coisas. É daqueles hotelões
com restaurante anexo. No elevador cartazes com os pratos convidativos.
Na rua paralela a diante, 18 de Julho, esquina com Yaguarón,
a livraria Feria del libro. Ali
encontrei Historias del Montevideo mágico,
e País de magias escondidas, de
Néstor Ganduglia, lendas urbanas. Sempre procuro relatos pitorescos do lugar
aonde vou.
É muito bom quando ao se encontrar um livro, que se
procurava ou nem se imaginava existir, ou depois de o ler, pensar:
— Este
já valeu a viagem!
Historias de
Montevideo mágico é interessantíssimo. Fascinantes lendas urbanas. Ali se
vê que O negrinho do pastoreio é uma
lenda uruguaia também.
Esse autor sempre faz um prólogo antes da narrativa. Em País de magias escondidas, no prólogo do
relato La laguna assombrada de los tres
negros três vezes disse que o quilombo de Palmares foi em plena Amazônia.
Palmares foi na serra da Barriga, Alagoas. Muito longe da
Amazônia.
O hotel fica na rua Colonia 1341.
Numa livraria alguém disse que uma cunhada disse que o hotel
Europa não é muito cuidadoso com a comida.
Na manhã de domingo começa a feira Tristán Narvaja, nome da rua onde começa. Basta seguir na mesma
calçada saindo do hotel e tomando o lado esquerdo, percorrer algumas quadras
pra chegar à Tristán Narvaja.
Feira imensa. Imagines um bairro inteiro de feira. Não é só
uma rua. Vai se ramificando, longe. Disseram pra ir cedo, porque na tarde
começa a encher de gente a ponto de não se conseguir andar, de tão apinhado.
Realmente. Ficou igual a festa junina quando fizeram aqui nas duas primeiras
vezes na praça do Papa.
No começo, na rua Tristán Narvaja, parte alta, é a área dos
livreiros, uma quadra inteira. A partir da quadra seguinte, lá embaixo,
apinhado de gente. Já não dava pra transitar. Na área dos livreiros só uns
gatos-pingados. Hehehe.
Depois da surpresa de nas duas cidades não existir
supermercado, naquela imensa feira não tem comida. Bom… Ter, tem. Vi gente
comendo pastel. Mas não achei barraca de comida. Só se tem uma área só delas.
Mas ali, com 1pessoa/cm² (imagine se fosse cidade grande), não tinha condição
de procurar.
Ainda mais que vi umas toranjas cortadas de amostra com
mosca passeando. E noutra, vários sacos-de-estopa com fruta seca, mas sem
plástico pra proteger, as mosconas passeando nos damascos.
Como não desjejuei no hotel, apostando na feira e errando feio,
fui passear no centro. Mas era domingo, tudo fechado, exceto os macdônaus e um
cassino. Nem pensar! Se é pra comer lixo, melhor dividir cum mendigo. Tem gente
que quando viaja vai a xópim e macdônau. É muita pobreza de espírito.
Só via uns trêileres com almoço. Decerto é como em Buenos
Aires, os salgados dentro da conveniência, não em vitrina vista da rua. Mas era
domingo…
Nunca vi uma cidade assim, que não tem comida. Decerto o
uruguaio se alimenta na tomada elétrica.
Uma coisa que nunca vi em nossos hermanos é água-de-coco.
Não existe. É coisa brasileira mesmo. Minha correspondente chilena disse que
não gostou quando experimentou em São Paulo. Eu disse que não pode ser. Decerto
pegou um coco rançoso. Acho que Campo Grande tem poucos vendedores de coco. É
um mercado que não está saturado.
Outra coisa é a pimenta. Digo pimenta mesmo, a fruta
curtindo em azeite, não a porcaria de molho-de-pimenta. Aqui tem no restaurante
do Senac do horto. Salgadinho sem pimenta e sorvete sem licorzinho como calda é
como desfile de escola de samba sem passista.
Outra é a erva-mate. Tem em Mato Grosso do Sul e os outros
países do cone-sul.
Nas duas cidade tem muito fumante (e muita fumanta, como
diria a presidenta). Moças sentadas na soleira. Uma termina de fumar e, pum!, joga
a bituca à sarjeta. Em toda parte vejo isso. Aqui, lá, acolá. Costumo ver o
cara acender, jogar o palito-de-fósforo à calçada, e no fim jogar também a
bituca. Nunca vi fumante jogando bituca ao lixo. É evidente que esses hábitos
suicidas, como fumante e as tão na moda perversões sexuais, têm um forte
componente psicótico de egoísmo exacerbado, apego ao sensorial, imaturidade e
alienação.
Na segunda fui a uma casa cambial retirar um envio via Western Union, já combinado pra Ramão
pra caso o dinheiro acabar. Não o meu, o do cartão. É tudo tão democrático,
libertário, estado de direito e tal, mas pra aduana não tem direito do cidadão,
e pra viajar tem limite de ~10 mil reais em 3 meses. E com dólar alto, o limite
pra carregar o cartão diminui.
Então aconselho a além do cartão débito internacional levar
uma quantia morta pra emergência e ou fazer ou deixar preparado pralguém fazer
um depósito via Western Union, onde
se pode sacar apresentando um código que o depositante informará. Ou fazer um
auto-envio: Enviar aqui e retirar lá.
São formas de proteção.
Outra coisa importante de se ter em casa e em viagem é uma
caixa de carverol, carvão vegetal ativado. Tem em farmácia. Mas não é toda
farmácia que tem, porque o público desconhece. http://www.drogaraia.com.br/saude/carverol-250mg-20-comprimido.html
Li num livro sobre toxicologia, Venenos, antídotos, contra-venenos, de William Tichy, com muita
curiosidade sobre o tema. Ali explica que qualquer absorvente (farinha-de-rosca
serve mas é pouco eficiente), como o carvão (esse mesmo, de churrasco, que em
casa sempre meus pais sempre usaram pra absorver odor na geladeira), serve como
antídoto quando se suspeita ou percebe que se intoxicou ingerindo algo. Os
comprimidos de carvão-ativado sofrem um processo industrial pra absorver mais.
O livro disse que se pode se salvar duma intoxicação ingerindo esses
comprimidos.
É um item que não deve faltar em caixa de pronto-socorro e
mala-de-viagem.
Não é só o argentino que fala um castelhano sui generis. O uruguaio também tem
linguajar exótico.
Consultei meu correspondente colombiano Carlos Molina:
— O
que achas dessa forma de castelhano?: Alquilá un 0km y disfrutá tranquilo.
Em português seria Alugá
um 0km e disfrutá tranqüilo.
A conjugação alquilad corresponde à
portuguesa alugai, terceira pessoa do
plural do imperativo afirmativo, alugai
vós. Como em português, a conjugação é usada de forma deturpada na
publicidade e demais formas de comunicação (conjugação, pronome e preposição
errados), e sempre com imprecisão se a mensagem é a quem lê ou a todos.
É uma
inquietude que sempre tive. Apesar de que falamos o mesmo idioma, nas
diferentes regiões os falantes têm formas também diferentes de se aproximar dos
outros e de falar ao mundo.
Os do sul,
argentinos de Buenos Aires e uruguaios, têm um trato um pouco invasivo e entrão.
O uruguaio é mais sério e tosco. O argentino se impõe ao outro, fica na
defensiva, necessita marcar presença, se mostrar.
Os do Chile e
Costa Rica são econômicos, parcimoniosos e reservados ao falar.
O tom dos
venezuelanos é um pouco altaneiro.
O tom e as
expressões dos mexicanos são agressivos e depreciativos.
Os equatorianos
são respeitosos e mantêm distância.
Os peruanos são
reservados e tímidos.
Quanto ao colombiano,
o assunto é um pouco complicado, pois existem quatro regiões muito diferentes e
que usam tons de voz diferentes. Quanto a nós, os paisas [região de Medelim], nunca
tuteamos [usar o tu, pois em castelhano usted
(você) é muito formal, ao contrário
do português], usamos o usted e o vos, somos francos e moderados, às vezes
grosseiros.
Os da costa caribenha
são mais burlescos e fanfarrões.
Os da região
central, Bogotá e arredor, são corteses e gentis mas dão dó.
Os do Pacífico
são tranqüilos, sossegados, mas o andar e a postura são insolentes.
Só uma pessoa
sã e livre está livre dessas manifestações, cadências com as quais disfarçamos nossas
crenças e misérias.
— E
quanto à forma gramatical e ortográfica? Alquilá,
uma forma caipira de alquilad o alquilar?
Mesma coisa. É
passar ao papel a forma de falar. Alquilá, vení, qué pensás… Se aproximam
demais do otro.
O pior é quando são tradutores. Se esquecem do castelhano e fazem a
tradução a argentino. O texto
fica ilegível.
Em geral
estamos num processo degenerativo da linguagem falada. Os filmes mexicanos e
argentinos quase necessitam tradução ao castelhano.
Ao escrever
textos literários ou científicos o idioma recupera sua gramática e ortografia.
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