Mau isso, Mau-rício
Acabamos de
ver uma polêmica em torno da postura do Maurício da Mônica, o que nos força a
uma série de reflexão. É triste constatar que os autores de personagens que
amamos são um alter-ego do autor. Com tristeza vemos que o Chaves da vida real
não é meigo como a personagem, que debocha da classe baixa dos companheiros de
filmagem. Triste saber que Cháplin era bem oposto daquela meiguice toda, que
Peter Sellers uma personalidade terrível, que Einsten um pai tirano. Sem falar
nos nacionais, Renato Aragão, Paulo Silvino, Chico Anísio...
E, ironia do
destino, Karl Marx era um sujeito bonachão, brincalhão, adorado pela família.
Pois é: Quem
nasceu em 25 de dezembro foi Nero.
Se o inventor
dum um remédio tem 7 anos pra o explorar, e a partir de então os outros podem
lançar genéricos, por que uma obra só cai no domínio público após 70 anos
depois da morte do autor?
Deveria cair
em domínio público 7 anos depois de se tornar indisponível. Se os donos do
direito não publicam nem disponibilizam, que se confisque! Assim como uma
criança é tirada dos pais por mau-trato ou abandono.
Uma obra estar
indisponível é algo inadmissível, crime de lesa-cultura.
Acima de tudo
o acesso aos bens culturais, informação. Que tal se queres ler a Bíblia e não
encontras? Não tem nas livrarias nem, sebos nem na internete. Só uns
colecionadores as guardam, empoeiradas, e alguns a vendem a preço de diamante.
Pesquisando a causa descobres que Inri Cristo, por ser filho do autor, entrou
com ação judicial pra recolher todas. Mas nem mesmo esse herdeiro se preocupa
em a disponibilizar, e quando o faz é a preço de diamante.
Não é
escandaloso que um bem cultural fique nas mãos duns privilegiados, que o
escondem, especulam, exploram? Quando alguém não consegue encontrar um livro, não
pela natural raridade mas por especulação, isso não é escandaloso? Isso não é
um atentado à cultura e à informação?
É preciso
botar em sua verdadeira dimensão de criminoso quem tem essa postura.
Criminosos os
colecionadores que especulam, guardando obras que logo se desmancharão, porque
o papel de polpa de pinheiro tem vida média de 100 anos. Já postei livros e
gibis que escaneei com cuidado, pois imanuseáveis pra ler, de tão quebradiças
as folhas. Os colecionadores são como aquela anedota do caipira que levou
sorvete na mala, e quando chegou de viagem já estavam derretidos.
Criminosos os
autores e demais detentores do direito autoral, que não dão acesso, apenas
guardam, como colecionadores, aguardando uma ocasião oportuna que nunca chega.
A nenhum deles
importa que gerações tenham essas obras como inacessíveis.
Um livro é
como um filho. Não é porque o filho é teu que tens o direito de o espancar, não
deixar brincar com os amigos nem estudar. Da mesma forma é um atentado cultural
mutilar, pôr adesivo, carimbo, rabiscar um livro. E um atentado contra o livro
e o leitor ao mesmo tempo os deixar separados forçosamente.
Toda nossa cultura de direito autoral é equívoca,
estereotipada, deformada. Só se baseia no lucro empresarial, só visa o interesse
do capitalista selvagem e só protege o interesse de negociantes poderosos. Não
protege o autor. Toda essa legislação tem de ser radicalmente modificada.
Em primeiro
lugar tem de ser garantido o acesso ao bem cultural. Só depois o interesse do
lucro. Sempre procurando favorecer o autor e os que promovem o acesso. Não como
hoje, uma ditadura capitalista onde o bem cultural é só na base do papo-furado.
Nossa cultura
ocidental cultua os heróis. Assim a máfia que domina o sistema promove os seus
como benfeitores, mesmo que sejam lixo. Temos tanta celebridade-lixo e,
impotentes, só podemos lamentar. O mundo fica dividido em duas classes: Uma
elite de benfeitores e um rebanho de beneficiados-compradores. Daí a
mentalidade de que alguns superdotados, alguns garotos-prodígio, criam as
coisas, são os benfeitores da humanidade, enquanto o restante compra o serviço.
Isso é verdade parcial.
Os benfeitores
formam uma elite fechada. Nem pensar que entre o rebanho possa aparecer um
benfeitor! Assim todo plebeu que tenta ingressar no clube dos benfeitores é
barrado. O lema é Aos
amigos todas as facilidades, aos inimigos todas as dificuldades, e aos demais a
lei.
Esse culto ao
herói benfeitor genial leva a uma deformação, um sofisma: A idéia de que quem
teve uma idéia, lhe ocorreu certa analogia, isso é produto duma mente
privilegiada e que se não fosse ele a humanidade permaneceria sem aquele
invento, texto, criação, idéia, o que só é verdade em casos extremos. Comumente
se constata a falácia dessa idéia.
Uma criação
autoral é como um filho. Se traz ao mundo a criança mas há restrição. O pai
dirige, educa, condiciona mas não pode determinar quais amigos ela terá. Vai
perdendo gradativamente a autoridade porque tudo no universo, seja na física ou
na biologia, é mutante. Tudo se transforma.
A criança vai
crescendo e participando do mundo. Não é eternamente propriedade dos pais.
Imagines um pai que se arrepende ter sido pai e decide extinguir o filho. Ou um
que porque está em crise decide guardar a criança no frízer até que a situação
econômica melhores. Pois é isso que os detentores de direito autoral e
colecionadores fazem.
Imagines eu ir
visitar um amigo pra perguntar porque ninguém mais o viu, e ser recebido pelo
pai, que diz que só posso conversar com meu amigo se pagar tanto.
— Mas senhor,
teu filho fez muita falta no amigo oculto e nas rodas de tereré, e tem uma
garota apaixonada. Tem até umas histórias que falta terminar de contar.
— Não
interessa. Sou o pai e tive muito gasto pra criar. Só deixarei falar consigo
quem pagar por hora!
Quando uma
obra é publicada interage com o mundo, que a digere, se apropria e assimila.
Não é apenas lida. Como a criança, ela faz parte do imaginário geral, interage,
influencia e é influenciada. Vejas a gama de Frankenstein, de Drácula, de
bruxas e fantasmas que há. Mary Shelley se baseou em certas lendas e fatos pra
compor seu romance. O filme Frankenstein,
de 1931 se baseou nesse romance. Nesses 80 anos uma gama enorme de paródias,
plágios, sátiras, imitações. Tudo o que era possível imaginar foi criado em torno
desse protótipo. Se criou, recriou, reciclou, recontou. Uma derivação
infindável, gerando estereótipos e mais estereótipos. O mesmo com Drácula,
Chapeuzinho Vermelho e tantas outras obras.
E se de
repente aparecer um dono da imagem do monstro de Frankenstein?
Mobidique,
Crusoé, tantos romances, novelas e contos foram criados a partir dum fato real.
Earl Derr Biggers criou Charlie Chan ao ouvir contar sobre um detetive
havaiano. Cheiquespir criava do nada? Não. O que fazia era dar trato literário
a estórias correntes, embelezar lendas, contos e fatos históricos. E cada um
pode reunir uma enorme lista de outros exemplo. Desafio a que alguém aponte uma
criação pura, original, sem analogia com outra.
Tudo o que se
cria é uma elaboração complexa cujos ingredientes e processos são
reminiscência, analogia, idéia, descoberta, emoção, interesse, tudo trabalhando
não só como soma mas interação, mesmo se transformando como em reação química.
Tudo é uma derivação, nada é absoluto.
Tentes
conceber uma idéia tão genial que seja inédita e sem relação com outras. Verás
que é impossível. Como a pureza, o zero e o infinito: Não existe idéia pura.
Tudo o que
criamos é derivado do que nossos ancestrais criaram e mesmo de nossos
contemporâneos. Tudo o que se faz é melhorar, polir, evoluir, criar novos
ramos.
Não existe
idéia genial que possa me ocorrer e a mais ninguém. Eu só me creria tão
original assim sendo muito ingênuo ou louco. Uma vez criei um conceito de
robopsicologia, a psicologia dos robôs. Mas eis que numa antologia de
ficção-científica vi no prefácio a tal palavra.
Dias atrás li
um artigo cosmológico onde um físico disse que os buracos-negros criam novos
universos e que o bigue-bangue foi a desembocadura dum buraco-negro, criando
assim nosso universo. Essa é uma idéia que me ocorreu há muito. Será que
escrevi algo e acabou chegando a ele ou sua conclusão foi independente? Não
importa. Creio que a muitos não ocorreu porque ficaram escravizados por
conceitos absurdos como Deus, infinito, vazio. Sabemos o quanto idéias errôneas
atravancam o progresso. O que temos de superar é essa emoção inferior de
deleite em ser admirado, ganhar medalha, ser uma sumidade dando entrevista,
escrevendo livro e fazendo palestra.
Muitas vezes
comentei sobre o conceito de que nós humanos estranhamente nos comportamos como
gnu em vez de como javali. Porque quando um é perseguido os outros só ficam
olhando, dizendo: Ufa! Graças-a-deus não foi comigo! E o leão vai comendo um a
um o gnu, enquanto só leão burro vai atrás de javali. Me ocorreu essa analogia
vendo um documentário mundo-animal ou ouvi isso de alguém? Não importa. O que
importa é que isso sirva pra que as pessoas se olhem no espelho, cum
desconfiômetro na mão, e parem de se comportar como gnu e se tornem javali.
Há poucos dias
um amigo me disse sobre esse conceito gnu-javali, que comentei um mês antes,
dizendo que achou que tem tudo a ver e que comenta isso com todo mundo. É assim
que as idéias correm. Na enxurrada de informação e estímulo que recebemos não
podemos guardar tudo em
detalhe. Por isso muitas vezes confundimos uma idéia nossa
com algo que ouvimos ou lemos. Mas a natureza é assim mesmo. Ninguém é dono da
informação, pois é tudo interação.
Muitas vezes
comento uma impressão, um conceito, e o outro manifestar pensar o mesmo. Então
vejo que não é uma sensação só minha. Mas claro! Se o outro tem a mesma
constituição biológica que a minha e vive no mesmo ambiente, por que não teria
impressão em comum?
Escrevi o conto Bocácio, modelo de Cháucer, onde aponto as similitudes entre os
contos do autor do Decamerão e os do
autor de Contos de Cantuária. Ali pus
uma nota tirada de O despertar dos magos,
de Louis Pauwels e Jacques Bergier:
Galileu e Newton confessaram claramente aquilo que deviam
à ciência antiga. Também Copérnico, no prefácio de suas obras dedicadas ao papa
Paulo III, escreveu textualmente que descobriu a idéia do movimento da Terra ao
ler os antigos. Aliás, a confissão desses empréstimos em nada diminui a glória
de Copérnico, de Newton e de Galileu, os quais pertencem a essa raça de
espíritos superiores cujo desinteresse e generosidade não levam em conta o amor-próprio de autor ou a originalidade
a todo custo, que são preconceitos modernos. Mais humilde e mais
profundamente autêntica parece a atitude da modista de Maria Antonieta,
senhorita Bertin. Ao modernizar habilidosamente um chapéu antigo, exclamou: Só é novo o que está esquecido.
Louis Pauwels e Jacques Bergier, O despertar dos magos
Reverencio, aplaudo e até brindo a sua inteligencia e perspicácia ao escolher ou escrever esse texto (não importa), caro blogueiro Mário Jorge.
ResponderExcluirAntes de terminar de ler o primeiro parágrafo deste texto (ora, qual texto!?...isso deveria ser publicado como uma crônica em destaque numa revista bem frequentada !), já senti vontade de dizer isso.
Meu Primeiro Contato com sua excelente articulação de idéias foi agora mesmo no blog Chutinosaco do Luiz e gostaria de ler mais.
Onde?
Abs,
Carlos Cerqueira
Muito bom este texto: reflete meus pensamentos de forma tal qual eu o escrevesse. Só não o assino porquê o fizeste antes!
ResponderExcluirMaravilha de texto, expressa muito bem a opinião de quem gostaq da leitura livre
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