quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Mau isso, Mau-rício
Acabamos de ver uma polêmica em torno da postura do Maurício da Mônica, o que nos força a uma série de reflexão. É triste constatar que os autores de personagens que amamos são um alter-ego do autor. Com tristeza vemos que o Chaves da vida real não é meigo como a personagem, que debocha da classe baixa dos companheiros de filmagem. Triste saber que Cháplin era bem oposto daquela meiguice toda, que Peter Sellers uma personalidade terrível, que Einsten um pai tirano. Sem falar nos nacionais, Renato Aragão, Paulo Silvino, Chico Anísio...
E, ironia do destino, Karl Marx era um sujeito bonachão, brincalhão, adorado pela família.
Pois é: Quem nasceu em 25 de dezembro foi Nero.
Se o inventor dum um remédio tem 7 anos pra o explorar, e a partir de então os outros podem lançar genéricos, por que uma obra só cai no domínio público após 70 anos depois da morte do autor?
Deveria cair em domínio público 7 anos depois de se tornar indisponível. Se os donos do direito não publicam nem disponibilizam, que se confisque! Assim como uma criança é tirada dos pais por mau-trato ou abandono.
Uma obra estar indisponível é algo inadmissível, crime de lesa-cultura.
Acima de tudo o acesso aos bens culturais, informação. Que tal se queres ler a Bíblia e não encontras? Não tem nas livrarias nem, sebos nem na internete. Só uns colecionadores as guardam, empoeiradas, e alguns a vendem a preço de diamante. Pesquisando a causa descobres que Inri Cristo, por ser filho do autor, entrou com ação judicial pra recolher todas. Mas nem mesmo esse herdeiro se preocupa em a disponibilizar, e quando o faz é a preço de diamante.
Não é escandaloso que um bem cultural fique nas mãos duns privilegiados, que o escondem, especulam, exploram? Quando alguém não consegue encontrar um livro, não pela natural raridade mas por especulação, isso não é escandaloso? Isso não é um atentado à cultura e à informação?
É preciso botar em sua verdadeira dimensão de criminoso quem tem essa postura.
Criminosos os colecionadores que especulam, guardando obras que logo se desmancharão, porque o papel de polpa de pinheiro tem vida média de 100 anos. Já postei livros e gibis que escaneei com cuidado, pois imanuseáveis pra ler, de tão quebradiças as folhas. Os colecionadores são como aquela anedota do caipira que levou sorvete na mala, e quando chegou de viagem já estavam derretidos.
Criminosos os autores e demais detentores do direito autoral, que não dão acesso, apenas guardam, como colecionadores, aguardando uma ocasião oportuna que nunca chega.
A nenhum deles importa que gerações tenham essas obras como inacessíveis.
Um livro é como um filho. Não é porque o filho é teu que tens o direito de o espancar, não deixar brincar com os amigos nem estudar. Da mesma forma é um atentado cultural mutilar, pôr adesivo, carimbo, rabiscar um livro. E um atentado contra o livro e o leitor ao mesmo tempo os deixar separados forçosamente.
Toda nossa cultura de direito autoral é equívoca, estereotipada, deformada. Só se baseia no lucro empresarial, só visa o interesse do capitalista selvagem e só protege o interesse de negociantes poderosos. Não protege o autor. Toda essa legislação tem de ser radicalmente modificada.
Em primeiro lugar tem de ser garantido o acesso ao bem cultural. Só depois o interesse do lucro. Sempre procurando favorecer o autor e os que promovem o acesso. Não como hoje, uma ditadura capitalista onde o bem cultural é só na base do papo-furado.
Nossa cultura ocidental cultua os heróis. Assim a máfia que domina o sistema promove os seus como benfeitores, mesmo que sejam lixo. Temos tanta celebridade-lixo e, impotentes, só podemos lamentar. O mundo fica dividido em duas classes: Uma elite de benfeitores e um rebanho de beneficiados-compradores. Daí a mentalidade de que alguns superdotados, alguns garotos-prodígio, criam as coisas, são os benfeitores da humanidade, enquanto o restante compra o serviço. Isso é verdade parcial.
Os benfeitores formam uma elite fechada. Nem pensar que entre o rebanho possa aparecer um benfeitor! Assim todo plebeu que tenta ingressar no clube dos benfeitores é barrado. O lema é Aos amigos todas as facilidades, aos inimigos todas as dificuldades, e aos demais a lei.
Esse culto ao herói benfeitor genial leva a uma deformação, um sofisma: A idéia de que quem teve uma idéia, lhe ocorreu certa analogia, isso é produto duma mente privilegiada e que se não fosse ele a humanidade permaneceria sem aquele invento, texto, criação, idéia, o que só é verdade em casos extremos. Comumente se constata a falácia dessa idéia.
Uma criação autoral é como um filho. Se traz ao mundo a criança mas há restrição. O pai dirige, educa, condiciona mas não pode determinar quais amigos ela terá. Vai perdendo gradativamente a autoridade porque tudo no universo, seja na física ou na biologia, é mutante. Tudo se transforma.
A criança vai crescendo e participando do mundo. Não é eternamente propriedade dos pais. Imagines um pai que se arrepende ter sido pai e decide extinguir o filho. Ou um que porque está em crise decide guardar a criança no frízer até que a situação econômica melhores. Pois é isso que os detentores de direito autoral e colecionadores fazem.
Imagines eu ir visitar um amigo pra perguntar porque ninguém mais o viu, e ser recebido pelo pai, que diz que só posso conversar com meu amigo se pagar tanto.
— Mas senhor, teu filho fez muita falta no amigo oculto e nas rodas de tereré, e tem uma garota apaixonada. Tem até umas histórias que falta terminar de contar.
— Não interessa. Sou o pai e tive muito gasto pra criar. Só deixarei falar consigo quem pagar por hora!
Quando uma obra é publicada interage com o mundo, que a digere, se apropria e assimila. Não é apenas lida. Como a criança, ela faz parte do imaginário geral, interage, influencia e é influenciada. Vejas a gama de Frankenstein, de Drácula, de bruxas e fantasmas que há. Mary Shelley se baseou em certas lendas e fatos pra compor seu romance. O filme Frankenstein, de 1931 se baseou nesse romance. Nesses 80 anos uma gama enorme de paródias, plágios, sátiras, imitações. Tudo o que era possível imaginar foi criado em torno desse protótipo. Se criou, recriou, reciclou, recontou. Uma derivação infindável, gerando estereótipos e mais estereótipos. O mesmo com Drácula, Chapeuzinho Vermelho e tantas outras obras.
E se de repente aparecer um dono da imagem do monstro de Frankenstein?
Mobidique, Crusoé, tantos romances, novelas e contos foram criados a partir dum fato real. Earl Derr Biggers criou Charlie Chan ao ouvir contar sobre um detetive havaiano. Cheiquespir criava do nada? Não. O que fazia era dar trato literário a estórias correntes, embelezar lendas, contos e fatos históricos. E cada um pode reunir uma enorme lista de outros exemplo. Desafio a que alguém aponte uma criação pura, original, sem analogia com outra.
Tudo o que se cria é uma elaboração complexa cujos ingredientes e processos são reminiscência, analogia, idéia, descoberta, emoção, interesse, tudo trabalhando não só como soma mas interação, mesmo se transformando como em reação química. Tudo é uma derivação, nada é absoluto.
Tentes conceber uma idéia tão genial que seja inédita e sem relação com outras. Verás que é impossível. Como a pureza, o zero e o infinito: Não existe idéia pura.
Tudo o que criamos é derivado do que nossos ancestrais criaram e mesmo de nossos contemporâneos. Tudo o que se faz é melhorar, polir, evoluir, criar novos ramos.
Não existe idéia genial que possa me ocorrer e a mais ninguém. Eu só me creria tão original assim sendo muito ingênuo ou louco. Uma vez criei um conceito de robopsicologia, a psicologia dos robôs. Mas eis que numa antologia de ficção-científica vi no prefácio a tal palavra.
Dias atrás li um artigo cosmológico onde um físico disse que os buracos-negros criam novos universos e que o bigue-bangue foi a desembocadura dum buraco-negro, criando assim nosso universo. Essa é uma idéia que me ocorreu há muito. Será que escrevi algo e acabou chegando a ele ou sua conclusão foi independente? Não importa. Creio que a muitos não ocorreu porque ficaram escravizados por conceitos absurdos como Deus, infinito, vazio. Sabemos o quanto idéias errôneas atravancam o progresso. O que temos de superar é essa emoção inferior de deleite em ser admirado, ganhar medalha, ser uma sumidade dando entrevista, escrevendo livro e fazendo palestra.
Muitas vezes comentei sobre o conceito de que nós humanos estranhamente nos comportamos como gnu em vez de como javali. Porque quando um é perseguido os outros só ficam olhando, dizendo: Ufa! Graças-a-deus não foi comigo! E o leão vai comendo um a um o gnu, enquanto só leão burro vai atrás de javali. Me ocorreu essa analogia vendo um documentário mundo-animal ou ouvi isso de alguém? Não importa. O que importa é que isso sirva pra que as pessoas se olhem no espelho, cum desconfiômetro na mão, e parem de se comportar como gnu e se tornem javali.
Há poucos dias um amigo me disse sobre esse conceito gnu-javali, que comentei um mês antes, dizendo que achou que tem tudo a ver e que comenta isso com todo mundo. É assim que as idéias correm. Na enxurrada de informação e estímulo que recebemos não podemos guardar tudo em detalhe. Por isso muitas vezes confundimos uma idéia nossa com algo que ouvimos ou lemos. Mas a natureza é assim mesmo. Ninguém é dono da informação, pois é tudo interação.
Muitas vezes comento uma impressão, um conceito, e o outro manifestar pensar o mesmo. Então vejo que não é uma sensação só minha. Mas claro! Se o outro tem a mesma constituição biológica que a minha e vive no mesmo ambiente, por que não teria impressão em comum?
 Escrevi o conto Bocácio, modelo de Cháucer, onde aponto as similitudes entre os contos do autor do Decamerão e os do autor de Contos de Cantuária. Ali pus uma nota tirada de O despertar dos magos, de Louis Pauwels e Jacques Bergier:
Galileu e Newton confessaram claramente aquilo que deviam à ciência antiga. Também Copérnico, no prefácio de suas obras dedicadas ao papa Paulo III, escreveu textualmente que descobriu a idéia do movimento da Terra ao ler os antigos. Aliás, a confissão desses empréstimos em nada diminui a glória de Copérnico, de Newton e de Galileu, os quais pertencem a essa raça de espíritos superiores cujo desinteresse e generosidade não levam em conta o amor-próprio de autor ou a originalidade a todo custo, que são preconceitos modernos. Mais humilde e mais profundamente autêntica parece a atitude da modista de Maria Antonieta, senhorita Bertin. Ao modernizar habilidosamente um chapéu antigo, exclamou: Só é novo o que está esquecido.

Louis Pauwels e Jacques Bergier, O despertar dos magos

3 comentários:

  1. Reverencio, aplaudo e até brindo a sua inteligencia e perspicácia ao escolher ou escrever esse texto (não importa), caro blogueiro Mário Jorge.
    Antes de terminar de ler o primeiro parágrafo deste texto (ora, qual texto!?...isso deveria ser publicado como uma crônica em destaque numa revista bem frequentada !), já senti vontade de dizer isso.
    Meu Primeiro Contato com sua excelente articulação de idéias foi agora mesmo no blog Chutinosaco do Luiz e gostaria de ler mais.
    Onde?
    Abs,
    Carlos Cerqueira

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  2. Muito bom este texto: reflete meus pensamentos de forma tal qual eu o escrevesse. Só não o assino porquê o fizeste antes!

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  3. Maravilha de texto, expressa muito bem a opinião de quem gostaq da leitura livre

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