Crônica
buenairense-montevideana, 2016
Capítulo 3
Nariz
empinado, corpo empertigado e síndrome de estados-unidos ● Glamurosa
cidade com bancas miseráveis ●
Buenos Aires es leyenda ●
Boa comida em pequenos lugares ●
Esplêndida pitsa ●
A feira central de Campo Grande foi assassinada ● A suíça americana
e as siberianas ● O
oceano de livro e a livraria mais bela ● Vocabulário argentínico ●
Uma pitada de geopolítica
O caso é que não encontrei o argentino empertigado, de nariz
empinado, da visão do livreiro de Bogotá, estereótipo que causa antipatia, além
do policial do guichê do aeroporto na chegada.
—
Quantos dias ficarás? Qual hotel?…
Então se
descuidar os brasileiros viram imigrantes ilegais e ficam morando lá de vez? O inverso
ainda vá, mas… então ainda pensam que são a suíça
americana? Não é só no Chile que aparece autoridade com síndrome de
estados-unidos.
As autoridades
é que estragam a imagem dum país, que o povo custou tanto erigir.
Assim como
quem estraga um idioma são os gramáticos e os jornalistas.
O que
vi foi gente de todo tipo, como aqui e noutros lugares, nada a ver com a imagem
estereotipada dos locutores de jogo e futebol na televisão. Cada um muito
ocupado em ganhar a vida, sem espaço pra pensar em rivalidades artificiais.
Sorte ter levado uma jaqueta impermeável. Ali, sim, seria a
terra da garoa. Finíssima. Parecia espalhada por esprei ou aerossol. Assim fui
bater perna, abrigado pelas marquises, andando bem rente, em direção à avenida
Rivadavia, onde tem uma praça com banca de livro.
Mas antes achei outra no caminho, quase chegando. Das várias
algumas abertas. São daquelas bancas (em castelhano quiosco ou kiosco)
antigas, um cubículo de área de cerca de 2×1m2, tão pequena que o banquista não
entra, veste. Ali um simpático e atencioso senhor de fisionomia indígena atendeu,
puxando cada caixote empilhado separado por gênero, pra eu ver tudo. O pessoal
usa criatividade com falta de espaço. Com tanto espaço na praça, as bancas
minúsculas, cubículos, praticamente caçambas.
Esporadicamente ventava forte, só um sopro. Então sentia um
pouco de frio. Felizmente o sopro era esporádico e assim ficou. Dava dó ver os
livros naquele ambiente inóspito, mas milagrosamente os livreiros conseguiam
defender suas peças.
No fim fui atrás dum banco pra sacar com cartão. Entrei a
uma verduraria pra perguntar. O pessoal ouvia um cliente cantar, certamente um
bolero.
Na última encontrei o volume 1 de Buenos Aires es leyenda - Mitos urbanos de una ciudad misteriosa,
de Guillermo Barrantes & Víctor Coviello, editorial Planeta. Nos dias seguintes achei os outros três volumes.
Umas quadras a diante cheguei à tal praça da Rivadavia,
também com umas e outras bancas abertas. O engraçado é que edições argentinas,
como Leoplán, não se acha tão fácil. Narraciones terroríficas, de editorial Molino, que achei em Santiago, Lima e
Bogotá, ali não. Billiken na feira de
Montevidéu.
É um labirinto de bancas, essas um pouco maior, em condição
muito precária. Uma, dum senhor bem velhinho, onde tinha um exemplar de Leoplán, era uma montanha de livros e
revistas, dificultando muito garimpar. Tudo rente à garoa. A todo momento
despencava um, quase caindo na cabeça. Os livreiros se viravam como podiam,
cobrindo com plástico ante a possibilidade de chuva ou garoa com vento. Noutra
banca, no oco da lombada dum livro fez morada uma linda aranha branca.
Eu não tinha onde pôr minha pequena sacola de viagem, pois o
chão estava molhado em toda parte, tendo de pedir ao banquista a deixar dentro.
A prefeitura deveria melhorar aquela condição precária.
Fornecer bancas maiores, fazer um teto geral, nem que fosse de lona. Poderia
colocar teto de alumínio, como tem nos estacionamentos de atacadão aqui e nos
eventos musicais ao ar-livre. Tal indigência
num ponto cultural de referência não deixa de ser vergonhosa.
Campo Grande, num lado, resolveu o problema dos camelôs
ambulantes, coisa que São Paulo não conseguiu, os instalando numa área toda
coberta, cobertura metálica quente pra danar, mas toda coberta e fechada. O outro
lado da moeda é que uma política fiscal truculenta e excessivamente
regulamentar tolhe a criatividade e a cidade perde o charme dos ambulantes,
como tem em Bogotá, Santiago e Curitiba, por exemplo.
Já o caso da feirona, caso que tanto se gaba, de que foi
transferida à antiga estação ferroviária, é mentira! É uma farsa!
Quem conheceu a feirona não se deixa engambelar por essa
tapeação.
A feirona foi extinta, extirpada, desmanchada. Foi uma
imensa perda cultural da cidade, abafada pela ignorância e alienação dos
habitantes e maquiavelismo dos governantes.
É preciso muita imaginação e doses de cachaça pra se
convencer de que aquilo é a feira central, e que só mudou de lugar.
O que tem lá na ferroviária são restaurantes padronizados,
tudo igual do começo ao fim, um pequeno camelódromo. Verdura e fruta quase nada.
Tudo ao gosto da máfia dos supermercados, pra acabar com as feiras.
Um colega de trabalho cuja família é feirante contou que os
feirantes são muito ignorantes e desunidos. Não se unem pra defender seu
interesse. Assim a máfia supermercadista que nos envenena lentamente
deita-e-rola.
Almocei no Mística,
Rivadavia 5499, pequeno restaurante-café, onde uma linda e simpática garçonete
serviu filé de merluza. Como antepasto sempre uma sopinha, o que caiu muito bem
naquele meio frio, e pãozinho com patê. Mas um pãozinho com massa bem rústica.
Pra beber tinha pomelo, a laranjona que tenho no quintal. Mas era um
refrigerante, certamente artificial. Então a opção teve de ser cerveja. Tinha Quilmes, mas essa, além de ser muito
industrial foi comprada pela Brahma.
Se continuar abrasileirando eles… Ai, ai!, parodiando a famosa canção, Lloraré por tí, Argentina…
Dali voltei ao hotel em táxi, cerca de 16h. Como o tempo foi
se fechando mais decidi dormir pra recuperar as muitas horas de vigília. Sábia
decisão, pois doravante fez tempo aberto, sol e temperatura agradável.
Os táxis são muito baratos lá. Só teve um que não sabia ir
ao hotel, tão no centro, e me transferiu a um colega que estacionou ao lado num
sinaleiro. Por isso é bom levar no bolso as coordenadas GPS do hotel. Sempre
que chego de viagem peço um cartão do hotel pra ter sempre no bolso. Assim o
taxista já lê nome e endereço rapidinho e não corro o risco de me perder ao
esquecer nome e endereço do hotel.
O taxista que falava sobre Brasil e Argentina disse que no
Brasil dão valor ao real e não dão bola ao dólar. Que o povo argentino é muito besta, que despreza a própria
moeda. Até põe casa a venda em dólar. Um absurdo!
Outro, com fotos de duas lindas indiazinhas de cabelo
corrido no porta-luva, suas filhas, disse que tem saudade do tereré, que
conheceu com amigos paraguaios. Disse que já entende bem português porque tem
muito passageiro brasileiro. Disse que pensou que eu morava ali porque falo
fluente. Que se nota sotaque que seria doutra região mas que seria um
hispânico.
Os taxista em geral simpáticos, dando dica. Um explicou minuciosamente
onde é a grande feira de livro dos domingos e como chegar até lá.
No dia seguinte, um passeio complementar na praça na
Rivadavia, pra em seguida correr a outro endereço selecionado. Aquela história
de otimizar o processo, tentando um arranjo de maior proveito e economia.
Pra almoçar, como em Lima, se anda muito até achar um
restaurante. Quando entrei achei a decoração muito parecida à do Mística. Olhando bem a decoração vi que
só podia ser ele. Sem dúvida, quando apareceu a garçonete do dia anterior.
Nesse dia tinha fruto-do-mar com arroz, com a sopinha e o pãozinho com patê como
antepasto. Uma deliciosa moqueca fumegante numa tigela de barro.
Um desses restaurantes-lanchonete com algo diferente, é o Puerto Rico, Junín 378. Não confundir
com o tradicional café La Puerto Rico.
À entrada um grande balcão de vidro com grande variedade de omelete, filés à
milanesa, tortilhas, coxinhas, todos enormes. Pedi uma tortilha, uma omelete e
uma coxinha (coxona) recheada de queijo derretido. Quem viu deve ter pensado
que sou um grande comilão, mas já combinara com o garção, comer um pouco e
levar o resto.
O Puerto Rico fica
quase na Correntes, na altura da 9 de Julho, onde tem muitos sebos. Quer dizer,
mais-ou-menos sebos, que infelizmente vão se descaracterizando, uns só com
alguma prateleira de usados, outros assumidamente de novos.
Decidi ir a uma pitsaria recomendada na internete, a Güerrín, Corrientes 1368. No balcão da
frente estava lotado na tarde mas no fundo tinha bastante mesa vaga. Tem pouca
opção se pedir fatia. Mas quê fatia! A massa é mais fina. Tão delicada que nem
se nota muito. O queijo estica tanto que se chupa como macarrão quatro vezes
antes de quebrar. Nada mau acompanhada de chope numa espessa caneca de vidro.
Nada a ver com as fajutas de Campo Grande, onde fazem um
creme na base dalguma gordura vegetal hidrogenada e chamam de 4 queijos, 5 queijos…,
que deve entupir coração…
Um conhecido aqui disse que só compra queijo quando vai a
Aquidauana, porque os queijos de Campo Grande, ou melhor, Buracópolis, é tudo
com amido, maisena, pra dar consistência.
É por isso que se faz dieta, não dá certo, e não se sabe por
quê…
O povo sempre tem na cabeça a idéia, espécie de arquétipo,
de que é em Bons Ares onde tem mais livro. Nada a ver. A quantidade de livro é
comparável a Rio de Janeiro e São Paulo. Nem de longe se compara ao oceano livresco
que são Lima e Bogotá.
Pode ser que sejam mais leitores. Na capital são muito
educados como pedestres. Mas, como disse Ramão, os argentinos nos hotéis
brasileiros são muito mal-educados na refeição.
No livro Historias de
Montevideo mágico, o autor disse:
[…] O velho ditado
de que somos a suíça americana, onde
campeia a razão e a modernidade globalizada do século 21 não impediu nossa gente
conservar seus relatos mágicos, ao mesmo tempo reais, e que estaria muito mais
perto dos conjuros populares que da fria lógica mercantil e utilitária.
Será que os dois hermanos
do cone sul pensam que isso ainda está vigente? É coisa lá do comecinho do
século 20. Dizque as duas suíças americanas não tiveram sustentação porque era
dinheiro nazista. Dizque… Sei-lá. Não estou suficientemente experto no assunto
pra filosofar encima.
É como aquela de que a mulher brasileira é a mais bonita,
que usa biquíni minúsculo enquanto as outras são cheias de pano. Esqueças. Já-era.
É dos anos 1980. A brasileira, pra-lá de convencida, ficou a trás, comendo
poeira.
Me lembro, cerca de 2008, quando passou uma reportagem sobre
a Sibéria. Eu disse:
—
Rapaz! Cê viu as siberianas? Fiuuuuuu!
— Pois
é. Não acredito que a brasileira seja a mais bonita.
A livraria El ateneo
grand splendid foi eleita pelo jornal britânico The guardian a segunda livraria mais linda do mundo. A primeira é a
livraria a Selexyz dominicanen boekhandel,
na cidade holandesa de Mastriste. Um antigo teatro. No fundo, atrás das
cortinas abertas, a cafeteria. Quatro andares de sacadas, donde certamente se
via a peça com binóculo-de-teatro. http://www.buenosairesturismo.com.br/passeios/livraria-ateneo.php
Diz que o lugar existe por causa duma lei quanto ao
patrimônio histórico. Que se não fosse a tal lei o lugar há muito estaria
demolido pra dar lugar a algum prédio prafrentex.
Assim como no linguajar gaúcho tem muito hispanismo, na
Argentina tem muito lusitanismo. Lá bondi
é ônibus, garrafa é garrafa,
garrafão, bomboneira, botija, botijão de gás. Às vezes aparecem palavras que
não tem no dicionário RAE, real academia espanhola. Tem vez que a custo se acha
o significado, pesquisando na internete, como espaguetizar. Num artigo apareceu o termo sobre a matéria
espaguetizada num buraco-negro. Significando desmaterializar, moer, decompor,
esmagar, com analogia à massa que é amassada, saindo como fios de macarrão.
Mas noutro artigo a manchete Eran
feitas niñas, ahora son bellas
mujeres (Eram [*?] meninas, agora são belas mulheres).
Em castelhano hecho é feito, hacer é fazer. Em nenhuma
pesquisa apareceu feita, feitas, feito ou feitos em
castelhano.
Se procuras uma loja que vende sacola de viagem ou
penduricalho pra pôr nome e endereço na mala, procures uma marroquinería, que
originalmente é loja que vende artigo de couro.
Mais um artigo sobre os paraguaios fundando Buenos Aires:
Anos atrás um brasileiro postou um vídeo iutúbico defendendo
a tese de que o Brasil nada tem a ver com e não deveria apoiar a reivindicação
argentina de posse às ilhas Malvinas. É óbvio que o sujeito nada entende de
geopolítica. Uma base da Otã no arquipélago barraria o acesso brasileiro à
Antártica.
Espero que Putin não acabe só com o dólar. Também com o
inglês como língua-geral.
Um governo mundial é algo muito interessante. O problema é
sob quem.
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