O vampiro de Jerusalém
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Eram vampiros os demônios?
Mal acabei de dar ração aos bichos quando começou a chuva
torrencial. Como meu hábito, comecei a ler à luz da janela. A chuva persistia e
eu já caía no sono quando ouvi alguém batendo na porta, insistentemente. Quem
poderia ter chegado à estância naquele momento? Era meu amigo Léuis. Nem
guarda-chuva portava. Ensopado, cansado e muito assustado. Parecia estar
fugindo. Presumi que chegara em louca carreira.
— Rápido. Ninguém deve me ver.
O fiz entrar imediatamente e providenciei tudo pra
normalizar a situação. Após um banho e um lanche rápido começou a contar.
— Te lembras de nossos longos serões sobre os ufos, as
sociedades secretas que manipulam o destino do mundo, criaturas misteriosas e
tantas outras coisas que discutíamos? Pois bem: Comecei a escrever, a
desenvolver minhas idéias. Como ficção, certamente. Nada é mais perigoso que
saber demais. Nada é pior que ter razão! O pior castigo ao escritor é ter
sucesso demais. Como Irène Hillel-Erlanger, ao publicar Viagens no caleidoscópio, onde, na década de 1920, inocentemente,
fez nele importantes revelações e foi, por isso, eliminada juntamente com sua
obra.
— Aquela tua teoria sobre os...
— Sim! Aconteceu que, mesmo escrevendo ficção, acertei na
mosca! Pela reação observada concluo que minha teoria é a mais pura verdade.
Por isso querem me eliminar. Agora tenho de me esconder.
— Ora! Francamente! Isso já é paranóia!
— Então não crês? Pois, então, te lanço um desafio: Se
pesquisares como eu e não te convenceres me matarei em tua frente. Vamos!
— Tudo bem. Aceito o desafio. Mas vamos em parte.
— Em parte! É assim, vendo tudo fragmentado e sob
estereótipo é que a verdade nos é escamoteada.
— Mas falavas em vampiro...
— Não vês? Não percebes que todo esse estereótipo é
intencional? Só abordam o tema sob a forma duma esculhambação grotesca, que é
pra que consideremos ridículo o tema. Estão nos condicionando. Martelam tanto o
estereótipo em nossa cabeça que já temos ojeriza. Isso é pra nos manter na
ignorância e nos escamotear a verdade. Então se falarmos neles rirão de nós e
virarão as costas. Não dizem que o maior trunfo do Diabo é fazer crer que não
existe?
— É verdade. Já me passou na cabeça a questão de vampiro
estar sempre na moda mas sempre em ótica tão pueril que chega a ser irritante.
Agora já tem até vampiros vindos doutros planetas.
— Esqueças todos os estereótipos, todos os vampiros de
cinema. Toda essa baboseira infernal só visa nos confundir. São tão
estereotipados quanto a bruxa madame Min ou o fantasma Gasparzinho. Voltemos ao
início. Vejamos como é o vampiro real e nos desviarmos do estereótipo no qual
todos patinam. Todos, menos Robert Ambelain, por exemplo.
Se levantou e começou a dar lentas voltas em torno de minha
poltrona.
— O vampirismo é um fenômeno de catalepsia. Tanto li e reli
essa obra capital, que tenho de memória a síntese da capa traseira:
Sensacionais
e recentes operações cirúrgicas levaram as mais altas autoridades médicas a admitir
que a definição oficial de morte legal,
apoiada, até então, na confirmação da parada absoluta do coração e da respiração,
teria de ser revista, tendo em consideração as conclusões resultantes das referidas
operações. O que dizer da imputrescibilidade absoluta do corpo, do sangue e dos
órgãos essenciais, derivada da secreção de óleos necessários a uma espécie de
auto-embalsamagem? O que dizer da manutenção duma temperatura próxima à dos
vivos, da flexibilidade dos membros, muitos anos após o sepultamento (alguns
casos remontando a cerca de 1800 anos)?
Citou também Ritos
estranhos no mundo, de Jacques Marcireau, cujas sentenças de abertura e
encerramento são essenciais. O livro começa assim:
Os ritos funerários não provêm do respeito aos mortos e da
crença noutra vida (imortalidade), mas do desejo de impedir o regresso do morto
(fantasma, alma do outro mundo) através dum tratamento especial do cadáver.
E termina assim:
Os seres psíquicos, que aparecem em todas as tradições
religiosas e em todos os folclores, temíveis ou benéficos, anjos e demônios,
deuses ou diabos, espíritos ou larvas, são os vampiros!
Léuis foi tomando tereré comigo. Isso o deixou ainda mais
psicotônico, de modo a mais parecer um orador inspirado.
Eu ainda não captara o sentido geral do que tentava me
comunicar mas deixei a cena rolar pra, aos poucos, ir ligando uma idéia a
outra. Como conhecia Léuis muito bem, sabia que algo muito interessante,
fantasioso ou não, se descortinaria a meus ouvidos.
— Estava criando um conto com idéias extravagantes,
exercendo a criatividade. Sabes como é: Todo escritor de talento transmite
idéia, ainda que fantasiosa, conectada, quero dizer, embasada nalguma teoria ou
fato provado, levando o leitor a conclusões interessantes ou instigando a
curiosidade com analogias engenhosas. Assim, fantasiando tão racionalmente em forma
de ficção, fui, sem perceber, criando uma teoria verdadeira. Acabei descobrindo
uma espécie de campo unificado da teoria conspiratória. Desvendei, numa só
tacada, o elo entre as sociedades secretas, os ufos, a criptozoologia e outros
tantos mistérios.
Eu sabia, muito bem, que não adiantaria ficar ansioso,
tentar extrair uma explicação breve, clara e objetiva de Léuis. Melhor o deixar
saborear lentamente seu desempenho teatral. Chupando mais uns goles através da
bomba, deu umas voltas ao redor da mesa, reabasteceu a guampa e me deu a vez de
tomar. Sua pose doutoral, como preste a revelar algo decisivo, parecia um
daqueles detetives fictícios, como Poarrô ou Cherloque Rolmes, explicando, no
final do episódio, como chegara a tão brilhante dedução que o levou a elucidar
o crime.
Recomendou muito eu ler O
vampirismo, de Robert Ambelain, Vampiro:
A enciclopédia dos mortos-vivos, de Melton, e O culto ao vampiro, de Jean-Paul Bourre, embora fale sobre seitas
que se baseiam mais no estereótipo e na fantasia.
— A Terra é um planeta anômalo, mal-assombrado, sinistro.
Por isso tanto segredo, mistério, conspiração. Um grande blefe nos escraviza há
milênios. Se as pessoas soubessem o quanto nosso dominador é débil... Como diz
a canção: Esses moços, pobres moços. Á, se soubessem o que sei!
— Aquele teu conto Religião
é a solução, sobre o que fazer quando as galinhas se tornarem inteligentes
e reivindicarem seus direitos, é parte da descoberta...
— Sim! Vamos passo a passo e entenderás tudo. Como tudo é
tão simples, afinal de conta. Vejamos o vampiro verdadeiro, sem estereótipo. A
figura do vampiro do folclore da Europa oriental. O sujeito em catalepsia,
morte aparente, é enterrado. Em muitos casos acorda no túmulo e, desesperado,
tenta sair, come os dedos e morre asfixiado. É uma das mais horripilantes
maneiras de morrer. Mas há casos em que permanece, definitivamente, catalético.
Então, num natural recurso de sobrevivência, sai, em desdobramento, exteriorização
da consciência, viagem astral. Seja qual nome se dê. O caso é que é assim que
essa larva, essa consciência vegetativa que, num instinto egoísta, busca
sobreviver a qualquer preço, se alimenta. Não sai fisicamente do corpo como
naqueles ingênuos filmes de conde Drácula. Não é algo análogo ao desdobramento dos vivos mas exatamente isso, porque não
é um morto mas um catalético. Nem chupa sangue, pois vampirismo não é
hematofagia. Seu ataque é instintivo, um predador de energia vital. Ataca
durante o sono, não o outro indivíduo mas o duplo dele. É durante o sono que
ficamos mais vulneráveis. Por isso certas insônias são recursos de defesa
contra ataques psíquicos. O vampiro suga a energia vital, o magnetismo, da
presa. O ataque é brutal, não aquela suave e romântica mordida no pescoço
daqueles filmes encantadores mas tolos. Como no relato do ataque a Stanoska.
Ela afirmou que fora o filho do arquiduque Milo, que a tentara estrangular.
Gritava, apavorada. As famosas marcas de mordida seriam marcas de dedos, não de
dentes caninos, pois caninos não servem a predador hematófago e sim a
carnívoro. Hematófagos, como o morcego, têm os dentes da frente alongados e
pontudos pra furar e sugar. Com caninos perfurando a pele o sangue escorreria nos
cantos da boca. A confusão com a hematofagia se reforçou quando o populacho conseguia
convencer as autoridades a exumar os suspeitos. Encontravam os suspeitos conservados,
como dormindo, e os panos do caixão empapados de sangue. Acontece que esse
sangue é do próprio vampiro, não da vítima. Algum metabolismo acelerado causava
essa hemorragia. Tudo isso levou à conclusão errônea de que o vampiro bebe o
sangue dos vivos. Esse ataque, instintivamente preferencial a consangüíneos seus,
se esparsa longamente no tempo, média de 50 anos, devido ao estado catalético
do vampiro, que, apesar de sangrar tanto, tem metabolismo imperceptível.
Passamos muitas horas discutindo o tema. A aposta me levou
a viagens e descobertas sensacionais, que relatarei mais centrado nas idéias
que nas peripécias cronologicamente observadas. Tive outros encontros com Léuis
e anos depois, com a crise dos conspiradores, saiu da fuga constante.